quarta-feira, 30 de agosto de 2017

1 - Convite Ao Bem

Antes de iniciar os trabalhos de nossa expedição socorrista, o Assistente Jerônimo conduziu-nos ao Templo da Paz, na zona consagrada ao serviço de auxílio, onde esclarecido instrutor comentaria as necessidades de cooperação junto às entidades infelizes, nos círculos mais baixos da vida espiritual que rodeiam a Crosta da Terra.

A maravilhosa noite derramava inspirações Divinas.


Ao longe, constelações faiscantes semelhavam-se a pérolas caprichosamente dispostas numa colcha de veludo imensamente azul. A paisagem lunar oferecia detalhes encantadores. Picos e crateras salientavam-se à nossa vista, embora a considerável distância, num deslumbramento de filigrana preciosa. Fulgurava o Cruzeiro do Sul como símbolo sublime, desenhado ao fundo azulescuro do firmamento. Canópus, Sírius e Antares brilhavam, infinitamente, figurando-se-nos balizas radiosas e significativas do
céu. A Via Láctea, dando-nos a impressão de prodigioso ninho de mundos, parecia um dilúvio de moedas resplandecentes a se derramarem de cornucópia gigantesca e invisível, convidando-nos a
meditar nos segredos excelsos da natureza divina. E as suaves virações noturnas, osculando-nos a mente em êxtase, passavam apressadas, sussurrando-nos grandiosos pensamentos, antes de se dirigirem às esferas distantes...


O templo, edificado no sopé de graciosa colina, apresentava aspecto festivo, em virtude da iluminação feérica a projetar singulares efeitos nos caminhos adjacentes.


As torres, à maneira deagulhas brilhantes, alongavam-se pelo céu, contrastando com o indefinível azul da noite clara e, cá em baixo, as flores de variadas figurações eram taças luminosas, servindo luz e perfume, balouçando, de leve, na folhagem, ao sopro incessante do vento.

Não éramos os únicos interessados na palestra da noite, porque  numerosos grupos de irmãos se dirigiam ao interior, acomodando-se no recinto. Eram entidades de todas as condições, fazendo-nos sentir o geral interesse pelas lições em perspectiva.


Seguíamos, o Assistente Jerônimo, o padre Hipólito, a enfermeira Luciana e eu, constituindo pequena equipe de trabalho, incumbida de operar na Crosta Planetária, durante trinta dias, aproximadamente, em caráter de auxílio e estudo, com vistas ao nosso desenvolvimento espiritual.


Jerônimo, o orientador de nossas atividades pela nobreza de sua posição, percebendo-me a curiosidade perante as movimentadas conversações em derredor, explicou, gentil:


– Muito justa a atenção, em torno do assunto. Admito que a quase totalidade dos interessados e estudiosos que afluem à casa integram comissões e agrupamentos de socorro nas regiões menos evolvidas.


E demorando o olhar nas fileiras de jovens e velhos que demandavam o interior, acrescentou:


– A palavra do Instrutor Albano Metelo merece a consideração excepcional da noite. Trata-se dum campeão das tarefas de auxílio aos ignorantes e sofredores dos círculos imediatos à Crosta Terrestre. Somos aqui diversos grupos de aprendizes e a experiência dele nos proporcionará infinito bem.


Breves minutos decorreram e penetramos, por nossa vez, o recinto radioso.


Vagavam no ar suaves melodias, precedendo a palavra orientadora.


Flores perfumosas, ornamentando o ambiente, embalsamavam a nave ampla. Alguns instantes agradabilíssimos de espera e o emissário apareceu na tribuna simples, magnificamente iluminada. 


Era um ancião de porte respeitável, cujos cabelos lhe teciam uma coroa de neve luminosa. De seus olhos calmos, esplendidamente lúcidos, irradiavam-se forças simpáticas que de súbito nos dominaram os corações. Depois de estender sobre nós a mão amiga, num gesto de quem abençoa, ouviu-se o coro do templo entoando o hino

“Glória aos Servos Fiéis”:


Ó Senhor!
Abençoa os teus servos fiéis,
Mensageiros de tua paz,
Semeadores de tua esperança.
Onde haja sombras de dor,
Acende-lhes a lâmpada da alegria;
Onde domine o mal, ameaçando a obra do bem,
Abre-lhes a porta oculta à tua misericórdia;
Onde surjam acúleos do ódio,
Auxilia-nos a cultivar
as flores bem-aventuradas de teu sacrossanto amor!
Senhor! são eles
Teus heróis anônimos,
Que removem pântanos e espinheiros,
Cooperando em tua divina semeadura...
Concede-lhes os júbilos interiores,
Da claridade sagrada em que se banham as almas redimidas.
Unge-lhes o coração com a harmonia celeste
Que reservas ao ouvido santificado;
Descortina-lhes as visões gloriosas
Que guardas para os olhos dos justos;

Condecora-lhes o peito com as estrelas da virtude leal...
Enche-lhes as mãos de dádivas benditas
Para que repartam em teu nome
A lei do bem,
A lua da perfeição,
O alimento do amor,
A veste da sabedoria,
A alegria da paz,
A força da fé,
O influxo da coragem,
A graça da esperança,
O remédio retificador!...
Ó Senhor,
Inspiração de nossas vidas,
Mestre de nossos corações,
Refúgio dos séculos terrestres!
Faze brilhar teus divinos lauréis
E teus eternos dons,
Na fronte lúcida dos bons -
Os teus servos fiéis!


O instrutor ouviu, em silêncio, de olhos molhados, deixando transparecer íntimo júbilo, enquanto a maioria da assembléia disfarçava discretamente as lágrimas que os acentos harmoniosos do cântico nos arrancavam do coração. Em se perdendo no espaço as derradeiras notas da melodia sublime, Metelo, sem qualquer luzo de gesticulação, saudou-nos com expressiva simplicidade, desejando- nos a paz do Senhor, e prosseguiu:


– Não mereço, amigos, o preito de carinho desta noite. Não tenho servido fielmente Àquele que nos ama desde o princípio e, por isso, vosso hino confunde-me. Mero soldado das lides evangélicas, trabalho ainda no campo da própria redenção.


Fez ligeira pausa, fitou-nos, paternal, e continuou:


– Mas... a minha personalidade não interessa. Venho falar-vos de nossos trabalhos singelos, nas regiões espirituais ligadas à Crosta da Terra. Ó meus irmãos! é necessário apelar para as nossas energias mais recônditas. As zonas purgatoriais multiplicam-se, assustadoramente, em derredor dos homens encarnados. 


A distância dos teatros de angústia, vinculados às realizações edificantes de nossa colônia espiritual, preservando valiosas reservas da vida infinita para essa mesma Humanidade que se debate no sofrimento e nas trevas, nem sempre formulamos uma idéia exata da ignorância e da dor que atormentam a mente humana, quanto aos problemas da morte. A felicidade faz que nasçam aqui as fontes inesgotáveis da esperança. Os que se preparam, ante os vôos maiores da Eternidade, trazem os olhos voltados para a Esfera Superior, na contemplação do ilimitado porvir, e os que se esforçam por merecer a bênção da reencarnação na Crosta Terrestre fixam as suas aspirações mais fortes no soberano propósito de redenção, organizando-se perante o futuro, ousados nas solicitações de trabalho e arrojados no bom ânimo. 

Todos os pormenores da vida, nesta cidade, falam alto de nossos objetivos de equilíbrio e elevação. Não longe de nós, começam a brilhar os raios da alvorada radiante dos mundos melhores, convidando-nos à visão beatífica do Universo e à gloriosa união com o Divino. Mas... – o orador fez significativo intervalo, parecendo escutar vozes e chamamentos de paisagens distantes, e prosseguiu: – e os nossos irmãos que ainda ignoram a luz? 
subiríamos até Deus, num círculo fechado?

Como operar o insulamento egoístico e partir, a caminho do Pai Amoroso e Leal que acende o Sol para os santos e os criminosos, para os justos e injustos? Metelo mostrou uma chama de zelo sagrado nos olhos percucientes e exclamou, depois de curta reflexão:


– Nós, que procuramos a santidade e a justiça, alcançaríamos, acaso, semelhante orientação, se outras fossem as circunstâncias que nos regeram até aqui? Construtores de nossos próprios destinos, por delegação natural do Criador, onde permaneceríamos, agora, sem os favores da oportunidade e o obséquio da proteção de benfeitores desvelados? Indubitavelmente, os ensejos de elevação felicitam todas as criaturas; no entanto, é imprescindível ponderar que a bênção da fonte pode converter-se em venenosa água estagnada, se a trancamos num poço incomunicável.


E as dádivas recebidas por nós são inúmeras e os dons que nos foram distribuídos, imensos... Seria completo o nosso regozijo, havendo lágrimas atrás de nossos passos? Como entoar hinos de hosana à felicidade sobre o coro dos soluços? Nobilíssimo, todo impulso de atingir o cume; entretanto, que veremos após a ascensão? Entre os júbilos de alguns, identificaríamos a ruína e a miséria de multidões incalculáveis!...

Nesse momento, envolvido nas vibrações de profundo interesse dos ouvintes, imprimiu novo acento ao verbo luminoso e tornou com indefinível melancolia:


– Também eu tive noutro tempo a obcecação de buscar apressado a montanha. A Luz de cima fascinava-me e rompi todos os laços que me retinham em baixo, encetando dificilmente a jornada.


A princípio, feri-me nos espinhos pontiagudos da senda, experimentei atrozes desenganos...


Consegui, porém, vencer os óbices imediatos e ganhei, jubiloso, pequenina eminência. Em me voltando, todavia, espantou-me a visão terrífica do vale: o sofrimento e a ignorância dominavam em plena treva. Desencarnados e encarnados lutavam uns contra os outros, em combates gigantescos, disputando gratifica ções dos sentidos animalizados. O ódio criava moléstias repugnantes, o egoísmo abafava impulsos nobres, a vaidade operava horrenda cegueira... Cheguei a sentir-me feliz, diante da posição que me distanciava de tamanhas angústias. Contudo, quando mais me vangloriava, dentro de mim mesmo, embalado na expectativa de atravessar mais altos cumes, eis que, certa noite, notei que o vale se represava de fulgente luz. Que sol misericordioso visitava o antro sombrio da dor?


Seres angélicos desciam, céleres, de radiosos pináculos, acorrendo às zonas mais baixas, obedecendo ao poder de atração da claridade bendita. Que acontecera? – perguntei ousadamente, interpelando um dos áulicos celestiais. – “O Senhor Jesus visita hoje os que erram nas trevas do mundo, libertando consciências escravizadas. Nem mais uma palavra. O mensageiro do Plano Divino não podia conceder-me mais tempo. Urgia descer para colaborar com o Mestre do Amor, diminuindo os desastres das quedas morais, amenizando padecimentos, pensando feridas, secando lágrimas, atenuando o mal e, sobretudo, abrindo horizontes novos à Ciência e à Religião, de modo a desfazer a multimilenária noite da ignorância. Novamente sozinho, na peregrinação para o Alto, reconsiderei a atitude que me fizera impaciente.

Em verdade, para onde marchava meu Espírito, despreocupado da imensa família humana, junto da qual haurira minhas mais ricas aquisições para a vida imortal? Porque enojar-me, ante o vale, se o próprio Jesus, que me centralizava as aspirações, trabalhava, solícito, para que a Luz de Cima penetrasse as entranhas da Terra? Não praticava eu o crime execrável da usura, olvidando aqueles entre os quais adquirira o roteiro destinado à minha própria ascensão? Como subir sozinho, organizando um céu exclusivo para minh'alma, lastimavelmente abstraído dos valores da cooperação que o mundo me prodigalizava com generosidade e abundância?


Mostrava-se o instrutor intensamente comovido. – Detive-me, então – continuou – e voltei.


Efetivamente, o caminho vertical e purificador da superioridade é a sublime destinação de todos. O cume, bafejado de resplendor solar, é sempre um desafio benéfico aos que vagueiam sem rumo, na planície. O alto polariza, naturalmente, as supremas esperanças dos que ainda permanecem em baixo... Todavia, à medida que penetramos o domínio da altura, imprimem-se-nos na mente e no coração as leis sublimes de fraternidade e misericórdia. Os grandes orientadores da Humanidade não mediram a própria grandeza senão pela capacidade de regressar aos círculos da ignorância para exemplificarem o amor e a sabedoria, a renúncia e o perdão aos semelhantes.

É por esse motivo que necessitamos temperar todo impulso de elevação com o sal do entendimento, evitando a precipitação nos despenhadeiros do egoísmo e da vaidade fatais.


Metelo silenciou por instantes e, diante da comoção com que lhe acompanhávamos a palestra, retomou o verbo com outra inflexão de voz:


– Outrora, quando nos envolvíamos ainda nos fluidos da carne terrestre, supúnhamos com desacerto que a vaidade e o egoísmo somente poderiam vitimar os homens encarnados. A Teologia, não obstante o ministério respeitável que lhe está afeto, enclausurava- nos a mente em fantasiosas concepções do reino da verdade.


Esperávamos um paraíso fácil de ser conquistado pela deficiência humana e temíamos um inferno difícil de regenerar-nos. Nossas idéias alusivas à morte confinavam-se a essas ridículas limitações.


Hoje, porém, sabemos que, depois do túmulo, há simplesmente continuação da vida. Céu e inferno residem dentro de nós mesmos.


A virtude e o defeito, a manifestação sublime e o impulso animal, o equilíbrio e a desarmonia, o esforço de elevação e a probabilidade da queda perseveram aqui, após o trânsito do sepulcro, compelindo-nos à serenidade e à prudência. Não nos encontramos senão em outro campo de matéria variada, noutros domínios vibratórios do próprio planeta em cuja Crosta tivemos experiências quase inumeráveis. Como não equilibrar, portanto, o coração no exercício efetivo da solidariedade? Logicamente não
exortamos ninguém a novos mergulhos no lodo antigo, não desejamos que os companheiros previdentes regressem à posição de filhos pródigos, distanciados voluntariamente do Eterno Pai, nem pretendemos interromper a marcha laboriosa dos servidores de boa vontade, a caminho dos Cimos da Vida.


Apelamos tão só no sentido de cooperardes nos trabalhos de socorro às esferas escuras.

Sois livres e dispondes de tempo, no desempenho dos deveres nobilitantes a que fostes chamados em nossa colônia espiritual.


Nada mais razoável que o proveito da oportunidade no planejamento da ascese. Entretanto, na qualidade de velho cooperador das tarefas de auxílio, ousamos rogar vosso interesse generalizado pelos que erram “no vale da sombra e da morte”, aguardando a esmola possível de vosso tempo, em favor dos nossos semelhantes, defrontados agora por situações menos felizes, não em virtude dos desígnios divinos, mas em razão da imprevidência deles mesmos. Contudo, qual de nós não foi invigilante algum dia?


Fez o orador uma pausa mais longa e continuou:


– De nossos amigos encarnados não podemos esperar, por enquanto, concurso maior e mais eficiente nesse sentido. Presos nas grades sensoriais, progridem lentamente na aprendizagem das leis que regem a matéria e a energia. Quando convidados a visitar nossos círculos de edificação, fora da instrumentalidade fisiológica, regressam ao corpo assombrados pelas visões rápidas que lhes foi possível arquivar e, em transmitindo suas lembranças aos contemporâneos, operam a coloração da água simples e pura da verdade com os seus “pontos de vista” e predileções pessoais no terreno da Ciência, da Filosofia e da Religião. Bernardin de Saint-Pierre, o romancista trazido por amigos a regiões vizinhas da Crosta Planetária, volta ao seu meio de ação e traça aspectos que asseverou pertencerem ao planeta Vênus. Huyghens, o astrônomo, recebe mentalmente algum noticiário de nossas esferas de luta e ensaia teorias referentes à vida em outros mundos, afirmando que os processos biológicos nos orbes distantes são absolutamente análogos aos da Crosta da Terra. Teresa d’Ávila, a religiosa santificada, transporta-se à paisagem de nosso plano, onde se lamentam almas sofredoras, e torna ao corpo carnal, descrevendo o inferno para os seus ouvintes e leitores. Swedenborg, o grande médium, percorre alguns trechos de nossas zonas de ação e pinta os costumes das “habitações astrais” como melhor lhe parece, imprimindo às narrações os fortes característicos de suas concepções individuais.


Quase todos os que vieram momentaneamente ao nosso campo de trabalho voltam ao esforço humano, exibindo a experiência de que foram objeto, pincelando-a com a tinta de suas inclinações e estados psíquicos. Porque se encontram fundamente arraigados ao “chão inferior” do próprio “eu”, acreditam enxergar outros mundos em situações iguais à da Terra, nosso maravilhoso templo, cujas dependências não se restringem à Esfera da Crosta sobre a qual os homens de carne pousam os pés. A Terra é também nossa grande mãe, cujos braços acolhedores se estendem pelo espaço além, ofertando-nos outros campos de aprimoramento e redenção.

Modificando a inflexão de voz, prosseguiu:


– As criaturas, porém, atravessam breve período de existência no mundo carnal. A maioria demora-se nas estações expiatórias do resgate difícil e confunde-se nas vibrações perturbadoras do sofrimento e do medo. Fazem da morte uma deusa sinistra. Apresentam o fenômeno natural da renovação com as mais negras cores. Agarradas às sensações do dia que passa, ignoram como dilatar a esperança e transformam a separação provisória numa terrível noite de amarguroso adeus. Vítimas da ignorância em que se comprazem, internam-se em florestas de sombras, onde perdem toda a paz, convertendo-se em presas delirantes dos infernos de horror, criados por elas mesmas nos desvairamentos passionais.


Como esperar delas a colaboração precisa, com a extensão desejável, se, pela indiferença para com os próprios destinos, mergulham- se diariamente nos rios de treva, desencanto e pavor? 


Unamo- nos portanto, auxiliando-as, segundo os preceitos evangélicos, descortinando-lhes novos horizontes e aclarando-lhes os caminhos evolutivos.

De olhos fulgurantes e neblinados de lágrimas, pela evocação talvez de quadros das esferas sombrias, que não nos eram dado conhecer, Metelo manteve-se longos instantes em silêncio, voltando a dizer em tom de súplica:


– Recordemos o Divino Mestre e não desdenhemos a honra de servir, não de acordo com os nossos caprichos pessoais, porém de conformidade com os seus desígnios e suas leis. Campos imensuráveis de trabalho aguardam-nos a cooperação fraterna e a semeadura do bem produzirá nossa felicidade sem fim!...


Falou, comovedoramente, por mais alguns minutos e, em seguida, invocou as forças divinas, arrancando-nos lágrimas de intraduzível
alegria.


Raios de claridade azul-brilhante choveram no recinto, proporcionando- nos a resposta do Plano Superior.


Transcorridos alguns momentos de meditação, Metelo fez exibir num grande globo de substância leitosa, situado na parte central do templo, vários quadros vivos do seu campo de ação nas zonas inferiores. Tratava-se da fotografia animada, com apresentação de todos os sons e minúcias anatômicas inerentes às cenas observadas por ele, em seu ministério de bondade Cristã.


Infelizes desencarnados, em despenhadeiros de dor, imploravam piedade. Monstros de variadas espécies, desafiando as antigas descrições mitológicas, compareciam horripilantes, ao pé de vítimas desventuradas.


As paisagens, analisadas de tão perto, através do avançado processo de fixação das imagens, não somente emocionavam:


infundiam terror. Na intimidade da massa leitosa, em que eram lançadas, adquiriam expressões de vivacidade indescritível. Apareciam soturnas procissões de seres humanos despojados do corpo, sob céus nevoentos e ameaçadores, cortados de cataclismos de natureza magnética.


Pela primeira vez, contemplava eu semelhante demonstração, sem disfarçar a emoção. Para onde se dirigiam aquelas fileiras imensas de Espíritos sofredores?


Como se sustentariam os ajuntamentos de almas desalentadas e semi-inconscientes, que me era dado divisar ali, ante os meus olhos tomados de assombro, atoladas em poços escuros de lama e padecimento?

Em dado instante, a voz do instrutor quebrou o silêncio.


Diante dum quadro extremamente doloroso, exclamou em voz firme:


– Muitos de vós sabeis que tenho nesses centros expiatórios os que me foram pais bem-amados na derradeira experiência vivida na carne, prisioneiros ainda de torturantes recordações; no entanto, crede, não nos move qualquer propósito egoístico nas tarefas de auxílio, porque temos aprendido com o Senhor que a nossa família se encontra em toda parte.


Observei que ninguém ousou voltar-se para Metelo em seu testemunho de humildade. Comovidíssimo, por minha vez, ante a demonstração de entendimento evangélico a que assistia, notei o olhar expressivo que o Assistente Jerônimo me endereçou, ao término do noticiário animado e sonoro, e procurei alijar de mim mesmo a preocupação de algo saber, acerca do drama particular do orientador, anulando meus inferiores impulsos de mera curiosidade.


Findos os trabalhos, que ocuparam pouco mais de duas horas, inclusive a palestra instrutiva, vários grupos eram apresentados ao instrutor, por um dos dirigentes do templo.


Tive a impressão de que a assembléia, em sua feição quase integral, era constituída de legítimos interessados nos trabalhos espontâneos de ajuda ao próximo. Pelas saudações e pelas frases de que se faziam acompanhar, percebi que se aglomeravam no recinto grandes e pequenos conjuntos de servidores, em diversas missões, com objetivos múltiplos. Consagravam-se alguns ao amparo de criminosos desencarnados, outros ao socorro de mães aflitas, colhidas inesperadamente pelas renovações da morte, outros, ainda, interessavam-se pelos ateus, pelas consciências encarceradas no remorso, pelos enfermos na carne, pelos agonizantes na Crosta, pelos dementes sem corpo físico, pelas crianças em dificuldade no plano invisível aos homens, pelas almas desanimadas e tristes, pelos desequilibrados de todos os matizes, pelos missionários perdidos ou desviados, pelas entidades jungidas às vísceras cadavéricas, pelos trabalhadores da Natureza, necessitados de inspiração e carinho.


Para todos, possuía o mentor uma sentença generosa de estimulo e admiração.


Chegada a nossa vez, Jerônimo nos apresentou gentilmente:


– Metelo, temos aqui três companheiros que me seguirão agora, em missão de socorro.


– Muito bem! muito bem! – exclamou o interpelado – que o Divino Servidor os inspire.


Abraçou-nos, com simplicidade, e perguntou:


– Partem com obrigação especializada? – Sim – esclareceu nosso orientador –, devemos atender, nos próximos trinta dias, a cinco dedicados colaboradores nossos, prestes a desencarnarem na Crosta. Trabalharam fiéis à causa do bem e as nossas autoridades encarregaram-nos de atender-lhes aos casos pessoais.


– Prevejo muito êxito – comentou Albano Metelo, fixando em nós o olhar sereno.


Revelando espontânea alegria pelas palavras ouvidas, Jerônimo acrescentou, delicado:


– Confio na dedicação dos meus companheiros.


Seguem comigo um ex-padre católico, uma enfermeira e um médico.

Seremos quatro servos em ação ativa.

– Compreendo – aduziu o instrutor.


– Vamos com autorização para efetuar experiências, estudos e auxílios eventuais, de conformidade com as circunstâncias, em vista do caráter de nosso trabalho, que nos prodigalizará ensejo a diferentes observações.


Enviou-nos Metelo reconfortante sorriso de otimismo e confiança, cumprimentou-nos individualmente e, depois de abraçar o nosso diretor, com intimidade, exclamou:


– Que o Mestre os ilumine e conduza.


Eram as palavras de despedida. Outro grupo socorrista aproximou-se dele e retiramo-nos do Templo da Paz, repletos do pensamento salutar de servir aos semelhantes em nome de Deus.


Lá fora, a noite de maravilhas era bem uma festa silenciosa, em que o aroma das flores convidava para o banquete celeste da luz.
2 - No Santuário Da Benção

Na véspera da partida, o Assistente Jerônimo conduziu-nos ao Santuário da Bênção, situado na zona dedicada aos serviços de
auxilio, onde, segundo nos esclareceu, receberíamos a palavra de mentores iluminados, habitantes de regiões mais puras e mais felizes que a nossa.


O orientador não desejava partir sem uma oração no santuário, o que fazia habitualmente, antes de entregar-se aos trabalhos de assistência, sob sua direta responsabilidade.


À tardinha, pois, em virtude do programa delineado, encontrávamo-nos todos em vastíssimo salão, singularmente disposto, onde grandes aparelhos elétricos se destacavam, ao fundo, atraindo-nos a atenção.


A reduzida assembléia era seleta e distinta.


A administração da casa não recebia mais de vinte expedicionários de cada vez. Em razão do preceito, apenas três grupos de socorro, prestes a partirem a caminho das regiões inferiores, aproveitavam a oportunidade.


O conjunto de doze, presidido por uma irmã de porte venerável, de nome Semprônia, que se consagraria ao amparo dos asilos de crianças desprotegidas; o grupo chefiado por Nicanor, um assistente muito culto e digno, que se dedicaria, por algum tempo, à colaboração nas tarefas de assistência aos loucos de antigo hospício, e nós outros, os companheiros encarregados de auxiliar alguns amigos em processo de desencarnação, perfaziam o total de
vinte entidades. O Instrutor Cornélio, diretor da instituição, atendido por um assessor, palestrava conosco, demonstrando-nos simplicidade e fidalguia, magnanimidade e entendimento.


– Logo de início, em nossa administração – explicava-nos – procuramos estabelecer o aproveitamento máximo do tempo com  o mínimo de oportunidade. Para concretizar a providência, desde muito não recebemos indiscriminadamente os grupos socorristas.


Reunimos os conjuntos de serviço, de acordo com as situações a que se destinam. Em dia de recepção aos que vão prestar serviços na Crosta, não atendemos a colaboradores incumbidos de operar exclusivamente nas zonas de desencarnados, como sejam as estações purgatoriais e as que se classificam como francamente tenebrosas.


Há que ordenar as palavras e selecioná-las, criando-se campo favorável aos nossos propósitos de serviço.


A conversação cria o ambiente e coopera em definitivo para o êxito ou para a negação. Além disso, como esta casa é consagrada ao auxílio sublime dos nossos governantes que habitam planos mais altos, não seria justo distrair a atenção e, sim, consolidar bases espirituais, com todas as energias ao nosso alcance, em que possam aqueles governantes lançar os recursos que buscamos. Compreendendo a extensão das tarefas por fazer e o respeito que devemos àqueles que nos ajudam, somos de parecer que precisamos sanar os velhos desequilíbrios das intromissões verbais desnecessárias e, muitas vezes, perturbadoras e dissolventes.

Enquanto lhe ouvíamos as ponderações, encantados, imprimiu ligeiro intervalo às sentenças esclarecedoras e continuou:


– Aliás, o profeta enunciou, há muitos séculos, que a palavra dita a seu tempo é maçã de ouro em cesto de prata.


Se estamos, portanto, verdadeiramente interessados na elevação, constitui-nos inalienável dever o conhecimento exato do valor “tempo”, estimando- lhe a preciosidade e definindo cada coisa e situação em lugar próprio, para que o verbo, potência divina, seja em nossas ações o colaborador do Pai.

Sorrimos, satisfeitos.


– Nada mais razoável e construtivo – opinou Semprônia, a destacada orientadora que dirigiria pela primeira vez a expedição de socorro aos orfãozinhos encarnados.


O dirigente do Santuário, reconhecendo, talvez, como nos sentíamos necessitados de esclarecimento quanto ao uso da palavra, prosseguiu:


– É lamentável se dê tão escassa atenção, na Crosta da Terra, ao poder do verbo, atualmente tão desmoralizado entre os homens.


Nas mais respeitáveis instituições do mundo carnal, segundo informes fidedignos das autoridades que nos regem, a metade do tempo é despendida inutilmente, através de conversações ociosas e inoportunas. Isso, referindo-nos somente às “mais respeitáveis”.


Não se precatam nossos irmãos em Humanidade de que o verbo está criando imagens vivas, que se desenvolvem no terreno mental a que são projetadas, produzindo conseqüências boas ou más, segundo a sua origem. Essas formas naturalmente vivem e proliferam e, considerando-se a inferioridade dos desejos e aspirações das criaturas humanas, semelhantes criações temporárias não se destinam senão a serviços destruidores, através de atritos formidáveis, se bem que invisíveis.


Notava-se, claramente, o interesse que suas definições despertavam nos ouvintes. Em seguida a uma pausa mais longa, tornou, cuidadoso:


– Toda conversação prepara acontecimentos de conformidade com a sua natureza. Dentro das leis vibratórias que nos circundam por todos os lados, é uma força indireta de estranho e vigoroso poder, induzindo sempre aos objetivos velados de quem lhe assume a direção intencional. Encarregados de assumir a chefia desta casa, trouxemos instruções de nossos Maiores para suprimir todos os comentários tendentes à criação de elementos adversos aos júbilos da bênção Divina. É por isso que, graças ao amor providencial de Jesus, temos conseguido a manutenção de um instituto em que os nossos mentores de Mais Alto se fazem sentir. 


A ausência de qualquer palavra menos digna e a presença contínua de fatores verbais edificantes facilitam a elaboração de forças sutis,
nas quais os orientadores divinos encontram acessórios para se adaptarem, de algum modo, às nossas necessidades na edificação comum.


Fez um gesto do narrador que se recorda de minudência importante e informou:


– Encetando nosso trabalho modesto, experimentamos reações apreciáveis. Procurava-se, então, o santuário, sem qualquer preparação íntima. Nossos amigos prosseguiam repetindo o cenário da Crosta, em que os devotos procuram os templos, como os negociantes buscam mercados. Devemos administrar dons espirituais, como quem dirige um armazém de vantagens fáceis ao personalismo inferior. Desde o primeiro dia, porém, amparados na delegação de competência que nos foi concedida, golpeamos, fundo, o velho hábito. Durante alguns dias, gastamos tempo, ensinando a reverência devida ao Senhor, a necessidade da limpeza interna do pensamento e a abolição do feio costume de tentar o suborno da Divindade com falaciosas promessas. E quando sentimos conscienciosamente que as lições estavam findas, iniciamos a aplicação de medidas retificadoras. Registros vibratórios foram instalados, assinalando a natureza das palavras em movimento.


Desde aí foi muito fácil identificar os infratores e barrar-lhes a entrada na câmara de iluminação, onde realizamos nossas preces...


Observando, talvez, que alguns de nós faziam certas considerações mentais, observou, sorridente: – Cremos desnecessária qualquer alusão ao imperativo dos pensamentos limpos. Quem busca uma casa especializada em abençoar, não pode hospedar idéias de ódio ou maldição.


Compreendemos prontamente a finalidade do ensino indireto e delicado e calamo-nos, prevenidos quanto à necessidade de resguardar a mente contra as velhas sugestões do mal.


Desejando facilitar-nos as expansões de alegria e cordialidade, Cornélio olhou fixamente um grande relógio que apresentava simbolicamente, no mostrador, a caprichosa forma dum olho humano de grandes proporções, em que dois raios luminosos indicavam as horas e os minutos, e falou, em tom fraternal:


– Teremos hoje, conforme notificação recebida há vários dias, a visita dum mensageiro de alta expressão hierárquica. Contudo, antes desse acontecimento excepcional, dispomos ainda de algum tempo. Considerando o preito de amor que devemos aos que nos orientam do Plano Superior, não convém emitir a nossa invocação de bênçãos, nem antes, nem depois do horário estabelecido. 


Estejam, pois, à vontade, os cooperadores...

E, fixando o olhar nos três encarregados de serviço, acrescentou, após as reticências:


– Enquanto me entendo particularmente com os chefes das missões, temos quase uma hora para a troca de idéias construtivas.


Cornélio passou a dirigir-se, de modo confidencial, aos nossos orientadores e, fracionados em grupinhos diversos, entabulamos conversações amigas.


Atendendo-me os desejos, padre Hipólito, qual o chamávamos na intimidade, apresentou-me o Assistente Barcelos, da turma de servidores que se destinava à assistência aos loucos. Fora ele dedicado professor no círculo carnal e interessava-se carinhosamente pela Psiquiatria sob novo prisma. Acolheu-me com fidalgo tratamento e, após as primeiras saudações, perguntou, bondoso:


É a primeira vez que integra uma expedição socorrista?


– De fato – esclareci – é a primeira. Tenho acompanhado diversas missões de auxílio na Crosta, mas na condição do estudante, com reduzidas possibilidades de cooperação. Agora, porém, o Assistente Jerônimo aceitou-me o concurso e sigo alegremente.


Endereçou-me cativante olhar, no qual transpareciam satisfação e surpresa, e observou:


– O trabalho beneficia sempre.


Interessado em seus informes e esclarecimentos, tornei, humilde:


– Seguindo expedições de socorro, como aprendiz, tive ensejo de visitar, por mais de uma vez, dois antigos e grandes sanatórios de alienados do nosso País e vi, de perto, a extensão dos serviços reservados aos servos de boa vontade, nessas casas de purificação e dor. As atividades de enfermagem, aí, são, a meu ver, das mais meritórias.


– Inegavelmente – concordou ele, prezando-me a atenção – a loucura é um campo doloroso de redenção humana.


Tenho motivos particulares para consagrar-me a esse setor da medicina espiritual e asseguro-lhe que dificilmente encontraríamos noutra parte tantos dramas angustiosos e problemas tão complexos.

– E tem colhido muitos frutos novos decorrentes do seu esforço?


– perguntei, curioso.


– Sim, venho arquivando confortadoras lições nesse sentido, concluindo que, com exceção de raríssimos casos, todas as anomalias de ordem mental se derivam dos desequilíbrios da alma.


Estamos longe de contar com o número suficiente de servidores treinados para socorrer eficazmente os encarcerados na cadeia das obsessões terríveis e amargurosas. É tão grande a quantidade de
doentes, nesse particular, que não sobra outro recurso além da resignação. Continuamos, desse modo, a atender superficialmente, esperando, acima de tudo, da Providência Divina.


Nos casos de perseguição sistemática das entidades vingativas e cruéis do plano inacessível às percepções do homem vulgar, temos, invariavelmente, uma tragédia iniciada no presente com a imprevidência dos interessados ou que vem do pretérito próximo ou remoto, através de pesados compromissos. Se os psiquiatras modernos penetrassem o segredo de semelhantes fatos, iniciariam a aplicação de nova terapêutica à base dos sentimentos cristãos, antes de qualquer recurso à hormonioterapia e à eletricidade.

Recordei os serviços de assistência a obsidiados, que acompanhara atentamente, e aduzi:


– Examinei alguns casos torturantes de obsessão e possessão que me impressionaram, sobremaneira, pela quase completa ligação mental, entre os verdugos e as vítimas.


Barcelos esboçou significativo gesto e acentuou:


– É a terrível história viva dos crimes cometidos, em movimentação permanente. Os cúmplices e personagens desses dramas silenciosos e muita vez ignorados por outros homens, antecedendo os comparsas no caminho da morte, tornam, amedrontados, ao convívio dos seus, em face das sinistras conseqüências com que se defrontam além do túmulo... Agarram-se instintivamente à organização magnética dos companheiros encarnados ainda na Crosta, viciando-lhes os centros de força, relaxando-lhes os nervos e abreviando o processo de extinção do tônus vital, porque têm sede das mesmas companhias junto às quais se lançaram em pleno abismo. Exibem sempre quadros tristes e escuros, onde se destaca a piedade de muitas almas redimidas que tornam do Alto em compassivos gestos de intercessão e socorro urgente.


Imprimiu às considerações ligeira pausa e prosseguiu: – Entretanto, observo, na atualidade, especialmente outro campo alusivo ao assunto. Antes de minha volta ao plano espiritual,
faminto de novas informações referentes ao psiquismo da personalidade humana, examinei, atento, a doutrina de Freud. 


Impressionado com as variações psicológicas dos caracteres juvenis, sob minha observação direta, e apaixonado pela solução dos profundos enigmas que envolvem a criatura terrestre, encontrei na psico-análise um mundo novo. Todavia, por mais que eu estudasse a prodigiosa coleção dos efeitos, jamais alcancei a tranqüilidade completa na investigação das causas, no círculo dos fenômenos em exame. Discípulo espontâneo e distante do eminente professor de Freiberg, somente aqui pude reconhecer os elos que lhe faltam ao sistema de positivação das origens de psicoses e desequilíbrios diversos. Os “complexos de inferioridade”, o “recalque”, a “libido”, as “emersões do subconsciente” não constituem fatores adquiridos no curto espaço de uma existência terrestre e, sim, característicos da personalidade egressa das experiências passadas.

 A subconsciência é, de fato, o porão dilatado de nossas lembranças, o repositório das emoções e desejos, impulsos e tendências que não se projetaram na tela das realizações imediatas; no entanto, estende-se muito além da zona limitada de tempo em que se move um aparelho físico.

 Representa a estratificação de todas as lutas com as aquisições mentais e emotivas que lhes foram conseqüentes, depois da utilização de vários corpos. Faltam, pois, às teorias de Segismundo Freud e seus continuadores a noção dos princípios reencarnacionistas e o conhecimento da verdadeira localização dos distúrbios nervosos, cujo início muito raramente se verifica no campo biológico vulgar, mas quase que invariavelmente no corpo perispiritual preexistente, portador de sérias perturbações congênitas, em virtude das deficiências de natureza moral, cultivadas com desvairado apego, pelo reencarnante, nas existências transcorridas.

As psicoses do sexo, as tendências inatas à delinqüência, tão bem estudadas por Lombroso, os desejos extravagantes, a excentricidade, muita vez lamentável e perigosa, representam modalidades do patrimônio espiritual dos enfermos, patrimônio que
ressurge, de muito longe, em virtude da ignorância ou do relaxamento voluntário da personalidade em círculos desarmônicos.


Estabelecera-se, entre nós, uma pausa feliz, que aproveitei, atentamente, arregimentando raciocínios quanto ao assunto, considerando os argumentos construtivos que o assistente enunciara, em benefício de minha própria iluminação.


Recordei meus escassos conhecimentos da doutrina freudiana e voltei mentalmente ao consultório, onde, muitas vezes, fora procurado por amigos atacados de estranhas e desconhecidas enfermidades mentais, a se socorrerem de minhas pobres noções de Medicina, não obstante minha carência de especialização em tal sentido. Eram maníacos. 


histéricos e esquizofrênicos de variados matizes, em cujos cérebros ainda existia luz bastante para a peregrinação através dos livros científicos. Haviam devorado ensinamentos de Freud; entretanto, se as teorias eram valiosas pelos elementos de análise, não ofereciam socorro algum substancial e efetivo ao doente. Descobriam a ferida sem trazer um bálsamo curativo. Indicavam o quisto doloroso, mas subtraíam o bisturi da intervenção benéfica. As explicações de Barcelos, por isso mesmo, se aproveitadas por médicos cristãos na Crosta Planetária, poderiam completar o trabalho de benemerência que a tese freudiana trouxera aos círculos acadêmicos. Antes, porém, que formulasse novas considerações íntimas, tornou ele:

– Tenho minhas atribuições junto aos desequilibrados mentais; todavia, meu esforço maior, ultimamente, desdobra-se na região inspiracional dos médicos humanitários, para que os candidatos involuntários à perturbação sejam auxiliados a tempo. 


Depois de verificada a loucura propriamente dita, na maioria dos casos terminou o processo da desarmonia psíquica.

Muito difícil conduzir a restauração perfeita aos alienados com ficha reconhecida, embora seja incessante a nossa batalha pelo restabelecimento integral da percentagem possível de enfermos.

Antes do desequilíbrio completo, houve enorme período em que o socorro do psiquiatra poderia ter sido providencial e eficiente. Não será, portanto, um grande trabalho orientarmos indiretamente o médico bem intencionado, para que ele auxilie o provável alienado, a tempo, empregando a palavra confortadora e o carinho restaurador?

Incalculável número de pessoas permanece no plano carnal, tentando a solução dos profundos problemas relativos ao próprio ser. Relacionando as conclusões dos tratadistas humanos, cujos pontos de vista divergem nos pormenores, temos, na esfera de aperfeiçoamento terrestre, cinco classes de psicoses: as de natureza paranóica, perversa, mitomaníaca, ciclotímica e hiper-emotiva, englobando, respectivamente, a mania das perseguições e o delírio de grandezas, os desequilíbrios e fraquezas de ordem moral, a histeria e a mitomania, os ataques melancólicos e as fobias e crises de angústia.


O interlocutor sorriu, fez uma pausa e continuou:


Esta, a definição científica dos nossos amigos que, como nós outros antigamente, só possuem o recurso de diagnosticar e analisar nas minudências anatômicas. Arabescos de ouro sobre a areia do Saara não tornariam o deserto menos árido. Assim, a terminologia brilhante sobre o quadro escuro do sofrimento.


Precisamos divulgar no mundo o conceito moralizador da personalidade congênita, em processo de melhoria gradativa, espalhando enunciados novos que atravessem a zona de raciocínios falíveis do homem e lhe penetrem o coração, restaurando-lhe a esperança no eterno futuro e revigorando-lhe o ser em suas bases essenciais. As noções reencarnacionistas renovarão a paisagem da vida na Crosta da Terra, conferindo à criatura não somente as armas com que deve guerrear os estados inferiores de si própria, mas também lhe fornecendo o remédio eficiente e salutar. Faz muitos séculos, afirmou Plotino que toda a antigüidade aceitava como certa a doutrina de que, se a alma comete faltas, é compelida a expiá-las, padecendo em regiões tenebrosas, regressando, em seguida, a outros corpos, a fim de reiniciar suas provas. Falta, desse modo, lamentavelmente, aos nossos companheiros de Humanidade o conhecimento da transitoriedade do corpo físico e o da eternidade da vida, do débito contraído e do resgate necessário, em experiências e recapitulações diversas.

Barcelos calara-se, por instantes, enquanto eu lhe ponderava a extensão da competência. Com justificada razão possuía ele o título de Assistente, porque não era um simples irmão auxiliador, mas profundo especialista no assunto a que se dedicara, fervoroso.


A conversação dele valia por um curso rápido de Psiquiatria sob novo aspecto, que me cabia aproveitar, em benefício próprio, para as tarefas marginais do serviço comum.


Desejando traduzir minha admiração e contentamento, observei, reconhecido:


– Ouvindo-lhe as considerações, reconheço que o missionário do bem, onde se encontre, é sempre um semeador de luz.


Ele, porém, pareceu não ouvir minha referência elogiosa e prosseguiu noutro tom, após longa pausa:


– O meu amigo examinou alguns casos de obsessão entre agentes invisíveis e pacientes encarnados, impressionando-se com a imantação mental entre eles. Pisamos no momento outro solo.


Referimo-nos às necessidades de esclarecimento dos homens, perante os seus próprios companheiros de plano evolutivo. No círculo das recordações imprecisas, a se traduzirem por simpatia e antipatia, vemos a paisagem das obsessões transferida ao campo carnal, onde, em obediência às lembranças vagas e inatas, os homens e as mulheres, jungidos uns aos outros pelos laços de consangüinidade ou dos compromissos morais, se transformam em
perseguidores e verdugos inconscientes entre si. Os antagonismos domésticos, os temperamentos aparentemente irreconciliáveis entre pais e filhos, esposos e esposas, parentes e irmãos, resultam dos choques sucessivos da subconsciência, conduzida a recapitulações retificadoras do pretérito distante. Congregados, de novo, na luta expiatória ou reparadora, as personagens dos dramas, que se foram, passam a sentir e ver, na tela mental, dentro de si mesmas, ituações complicadas e escabrosas de outra época, malgrado os contornos obscuros da reminiscência, carregando consigo fardos pesados de incompreensão, atualmente definidos por “complexos de inferioridade”.


Identificando em si questões e situações íntimas, inapreensíveis aos demais, o Espírito reencarnado que adquire recordações, não obstante menos precisas, do próprio passado, candidata-se, inelutavelmente, à loucura. E nessa categoria, meu amigo, temos na Crosta Planetária uma percentagem cada vez maior de possíveis alienados, requerendo o concurso de psiquiatras e neurologistas, que, a seu turno, se conservam em posição oposta à verdade, presos à conceituação acadêmica e às rígidas convenções dos preceitos oficiais. Esses, em particular, são os pacientes que interessam, de mais perto, meus estudos pessoais.

São as vítimas anônimas da ignorância do mundo, os infortunados absolutamente desentendidos que, de loucos incipientes, prosseguem, pouco a pouco, a caminho do hospício ou do leito de enfermidades ignoradas, tão só porque lhes faltam a água viva da
compreensão e a luz mental que lhes revelem a estrada da paciência e da tolerância, em favor da redenção própria.


– E são muitos, semelhantes casos angustiosos? – indaguei, por falta de argumentação à altura das considerações ouvidas.


O Assistente sorriu e esclareceu:


– Oh! meu caro, a extensão do sofrimento humano, nesse sentido, confunde-se também com o infinito.


Barcelos ia prosseguir, mas retiniu, sonora, uma campainha singular, convocando-nos aos preparativos da oração. Era preciso atender.
3 - O Sublimação Visitante

Reunidos em pequeno salão iluminado, observei que a atmosfera permanecia embalsamada de suave perfume.

Recomendou-nos Cornélio a oração fervorosa e o pensamento puro. Tomando-nos a dianteira, o instrutor estacou à frente de reduzida câmara estruturada em substância análoga ao vidro puro e transparente.


Olhei-a, com atenção. Tratava-se dum gabinete cristalino, em cujo interior poderiam abrigar-se, à vontade, duas a três pessoas.


Destacando-se pela túnica muito alva, o diretor da casa estendeu a destra em nossa direção e exclamou com grave entono:


– Os emissários da Providência não devem semear a luz sem proveito; constituir-nos-ia falta grave receber, em vão, a Graça Divina. Colocando-se ao nosso encontro, os Mensageiros do Pai exercitam o sacrifício e a abnegação, sofrem os choques vibratórios de nossos planos mais baixos, retomam a forma que abandonaram, desde muito, fazem-se humildes como nós e, para que nos façamos tão elevados quanto eles, dignam-se ignorar-nos as fraquezas, a fim de que nos tornemos partícipes de suas gloriosas experiências...


Interrompeu o curso das palavras, fitou-nos em silêncio e prosseguiu noutro tom:


– Compreendemos que, lá fora, ante os laços morais que ainda nos prendem às esferas da carne, é quase inevitável a recepção das reminiscências do pretérito, a distância. A lembrança tange as cordas da sensibilidade e sintonizamos com o passado inferior.


Aqui, porém, no Santuário da Bênção, é imprescindível observar uma atitude firme de serenidade e respeito. O ambiente oferece bases à emissão de energias puras e, em razão disso, responsabilizaremos os companheiros presentes por qualquer minúcia desarmônica no trabalho a realizar. Formulemos, pois, os mais altos pensamentos ao nosso alcance, relativamente à veneração que devemos ao Pai Altíssimo!...


Para outra classe de observadores, o Instrutor Cornélio poderia parecer excessivamente metódico e rigorista; entretanto, não para nós, que lhe sentíamos a sinceridade profunda e o entranhado amor às coisas santas.


Após longo intervalo, destinado à nossa preparação mental, tornou ele, sem afetação:


– Projetemos nossas forças mentais sobre a tela cristalina. O quadro a formar-se constará de paisagem simbólica, em que águas mansas, personificando a paz, alimentem vigorosa árvore, a representar a vida. Assumirei a responsabilidade da criação do tronco, enquanto os chefes das missões entrelaçarão energias criadoras fixando o lago tranqüilo.


E dirigindo-se especialmente a nós outros, os colaboradores mais humildes, acrescentou:


– Formarão vocês a veste da árvore e a vegetação que contornará as águas serenas, bem como as características do trecho de firmamento que deverá cobrir a pintura mental.


Após ligeira pausa, concluía:


– Este, o quadro que ofereceremos ao visitante excepcional que nos falará em breves minutos, Atendamos aos sinais.


Dois auxiliares postaram-se ao lado da pequena câmara, em posição de serviço, e, ao soar de harmonioso aviso, pusemo-nos todos em concentração profunda, emitindo o potencial de nossas forças mais íntimas. Senti, à pressão do próprio esforço, que minha mente se deslocava na direção do gabinete de cristal, onde acreditei penetrar, colocando tufos de grama junto ao desenho do lago que deveria surgir... Utilizando as vigorosas energias da imaginação, recordei a espécie de planta que desejava naquela criação temporária, trazendo- a do passado terrestre para aquela hora sublime. 


Estruturei todas as minúcias das raízes, folhas e flores, e trabalhei, intensamente, na intimidade de mim mesmo, revivendo a lembrança e fixando-a no quadro, com a fidelidade possível...

Fornecido o sinal de interrupção, retomei a postura natural de quem observa, a fim de examinar os resultados da experiência, e contemplei, oh! maravilha!... Jazia o gabinete fundamente transformado.


Águas de indefinível beleza e admirável azul-celeste refletiam uma nesga de firmamento, banhando as raízes de venerável árvore, cujo tronco dizia, em silêncio, da própria grandiosidade.


Miniaturas prodigiosas de cúmulos e nimbos estacionavam no céu, parecendo pairar muito longe de nós... As bordas do lago, contudo, figuravam-se quase nuas e os galhos do tronco apresentavam- se vestidos escassamente.


O instrutor, célere, retomou a palavra e dirigiu-se a nós com firmeza:


– Meus amigos, a vossa obrigação não foi integralmente cumprida. Atentai para os detalhes incompletos e exteriorizai vosso poder dentro da eficiência necessária! Tendes, ainda, quinze minutos para terminar a obra.


Entendemos, sem maiores explicações, o que desejava ele dizer e concentramo-nos, de novo, para consolidar as minudências de que deveria revestir-se a paisagem.


Procurei imprimir mais energia à minha criação mental e, com mais presteza, busquei colocar as flores pequeninas nas ramagens humildes, recordando minhas funções de jardineiro, no amado lar que havia deixado na Terra, Orei, pedi a Jesus me ensinasse a cumprir o dever dos que desejavam a bênção do seu Divino amor naquele santuário e, quando a notificação soou novamente, confesso que chorei.


O desenho vivo da gramínea que minha esposa e os filhinhos tanto haviam estimado, em minha companhia no mundo, adornava as margens, com um verde maravilhoso, e as mimosas flores azuis, semelhando-se a miosótis silvestres, surgiam abundantes...


A árvore cobrira-se de folhagem farta e vegetação de singular formosura completava o quadro, que me pareceu digno de primoroso artista da Terra.


Cornélio sorriu, evidenciando grande satisfação, e determinou que os dois auxiliares conservassem a destra unida ao gabinete.


Desde esse momento, como se uma operação magnética desconhecida fosse posta em ação, nossa pintura coletiva começou a dar sinais de vitalidade temporária. Algo de leve e imponderável,
semelhante a caricioso sopro da Natureza, agitou brandamente a árvore respeitável, balouçando-se os arbustos e a minúscula erva, a se refletirem nas águas muito azuis, docemente encrespadas de instante a instante...


Minha gramínea estava, agora, tão viva e tão bela que o pensamento de angustiosa saudade do meu antigo lar ameaçou, de súbito, meu coração ainda frágil. Não eram aquelas as flores miúdas que a esposa colocava, diariamente, no quarto isolado, de estudo?


Não eram as mesmas que integravam os delicados ramos que os filhos me ofereciam aos domingos pela manhã? Vigorosas reminiscências absorveram-me o ser, oprimindo-me inesperadamente a alma, e eu perguntava a mim mesmo por que mistério o Espírito enriquecido de observações e valores novos, respirando em campos mais altos da inteligência, tem necessidade de voltar ao pequenino círculo do coração, como a floresta luxuriante e imponente que não prescinde da singela e reduzida gota d'água para dessedentar-lhe as raízes... 


Senti o anseio mal disfarçado de arrebatá-los compulsoriamente da Crosta, transportando-os para junto de mim, desejoso de reuni-los, ao meu lado, em novo ninho, sem separação e sem morte, a fazer-lhes experimentar os júbilos da vida eterna... 

Minhas lágrimas estavam prestes a cair. Bastou, no entanto, um olhar de Jerônimo para que eu me reajustasse.

Arremessei para muito longe de mim toda a idéia angustiosa e consegui reaver a posição do cooperador decidido nas edificações do momento.


Cornélio, de pé, ante a paisagem viva, enquanto nos mantínhamos sentados, estendeu os braços na direção do Alto e suplicou:


– Pai da Criação infinita, permite, ainda uma vez, por misericórdia, que os teus mensageiros excelsos sejam portadores de tua inspiração celeste para esta casa consagrada aos júbilos de tua bênção!...


Senhor, fonte de toda a Sabedoria, dissipa as sombras que ainda persistem em nossos corações, impedindo-nos a gloriosa visão do porvir que nos reservaste; fase vibrar, entre nós, o pensamento augusto e soberano da confiança sem mescla e deixanos perceber a corrente benéfica de tua bondade infinita, que nos lava a mente mal desperta e ainda eivada de escuras recordações do mundo carnal!... Auxilia-nos a receber dignamente teus devotados emissários!...

Focalizando a mente em nossos trabalhos, o instrutor prosseguiu, noutra inflexão de voz:


– Sobretudo, ó Pai, abençoa os teus filhos que partem, a caminho dos círculos inferiores, semeando o bem. Reparte com eles, humildes representantes de tua grandeza, os teus dons de infinito amor e de inesgotável sabedoria, a fim de que se cumpram teus sagrados desígnios... Acima, porém, de todas as concessões, proporciona- lhes algo de tua divina tolerância, de tua complacência sublime, de tua ilimitada compreensão, para que satisfaçam, sem desesperação e sem desânimo, os deveres fraternais que lhes cabem, ante os que ignoram ainda as tuas leis e sofrem as conseqüências dos desvios cruéis....


Calou-se o orientador do Santuário e, dentro da imponente quietude da câmara, vimos que a paisagem, formada de substância mental, começou a iluminar-se, inexplicavelmente, em seus mínimos contornos.


Guardava a idéia de que reduzido sol surgiria à nossa vista sob a nesga de céu, no quadro singular. Raios fulgurantes penetravam o fundo esmeraldino e vinham refletir-se nas águas.


Cornélio, de mãos erguidas para o alto, mas sem qualquer expressão ritualística, em vista da simplicidade espontânea de seus gestos, exclamou:


– Bem-vindo seja o portador de Nosso Pai Amantíssimo!


Nesse instante, sob nossos olhos atônitos, alguém apareceu no gabinete, entre a vegetação e o céu. Semelhava-se a um sacerdote de culto desconhecido, trajando túnica lirial.


Fisionomia simpática de ancião, apresentava-se nimbado de luz indescritível e seu olhar nos mantinha extasiados e presos, num misto de veneração e encantamento, sem que nos fosse possível qualquer fuga mental de
sua presença sublime.


Via-se-lhe apenas o busto cheio, parecendo-me que os seus membros inferiores se ocultavam naturalmente na folhagem abundante.


Seus braços e mãos, todavia, revelavam-se com todas as minudências anatômicas, porque com a destra nos abençoava num gesto amplo, mantendo na outra mão pequeno rolo de pergaminhos brilhantes, deixando-nos perceber dourado cordão atado à cinta.


Visivelmente sensibilizado, o diretor da casa saudou, nominalmente:

– Venerável Asclépios, sê conosco! O emissário, em voz clara e sedutora, desejou-nos a Paz do Cristo e, em seguida, dirigiu-nos a palavra em tom inexprimível na linguagem humana (abstenho-me aqui de qualquer tradução incompleta e imperfeita, atendendo a imperativos de consciência).


Ouvimo-lo sob infinita emoção, sem que qualquer de nós contivesse as lágrimas. O verbo do admirável mensageiro que chegava de Esferas Superiores, trazendo-nos a bênção Divina, caia-nos n'alma de modo intraduzível e acordava-nos o espírito eterno para a infinita glória de Deus e da vida imortal.


Não conseguiria descrever o que se passava em mim próprio.


Jamais escutara alguém com aquele misterioso e fascinante poder magnético de fixação dos ensinamentos de que se fizera emissário.


Ao abençoar-nos, ao término da maravilhosa alocução, irradiavam-se de sua destra muito alva pequeninos focos de luz, em forma de minúsculas estrelas que se projetavam sobre nós, invadindo- nos o tórax e a fronte e fazendo-nos experimentar o júbilo inenarrável de quem sorve, feliz, vigorosos e renovadores alentos da vida.


Quiséramos prolongar, indefinidamente, aqueles minutos Divinos, mas tudo fazia acreditar que o mensageiro estava prestes a despedir-se.


Interpretando, contudo, o pensamento da maioria, Cornélio dirigiu-lhe a palavra e indagou, humilde, se os irmãos presentes poderiam endereçar-lhe algumas solicitações.


O arauto celeste aquiesceu, sorrindo, num gesto silencioso, colocando-nos à vontade, dando-me a impressão de que aguardava semelhante pedido.


A irmã Semprônia, que chefiava pela primeira vez a turma de socorro ao serviço de amparo aos órfãos, foi a primeira a consultá-lo: – Venerável amigo – disse com transparente sinceridade –, temos algumas cooperadoras na Crosta que esperam de nós uma palavra de ordem e reconforto para prosseguirem nos serviços a que se devotaram de coração fiel. Desde muito tempo, experimentam perseguições declaradas e toleram o sarcasmo contínuo de adversários gratuitos que lhes ferem o espírito sensível, atacandolhes os melhores esforços, através de maldades sem conto. inegavelmente, não cedem ante os fantasmas da sombra e mobilizam as energias no trabalho de resistência Cristã...


Exercendo funções de colaboradora, nesta expedição de socorro que agora chefio pela primeira vez, conheço, de perto, a dedicação que nossas amigas testemunham na obra sublime do bem, mas não ignoro que padecem, heróicas e leais, há quase trinta anos sucessivos, ante o assédio de inimigos implacáveis e cruéis.

Após curto silêncio, que ninguém se atreveu a interromper, a consulente concluiu, perguntando:


– Que devemos dizer a elas, respeitável amigo? Por que palavras esclarecedoras e reconfortantes sustentar-lhes o ânimo em tão longa batalha? De alma voltada para o nosso dever, aguardamos de vossa generosidade o alvitre oportuno.


Vimos, então, o inesperado. O mensageiro ouviu, paciente e bondoso, revelando grande interesse e carinho na expressão fisionômica e, depois que Semprônia deu por terminada a consulta, retirou uma folha dentre os pergaminhos alvinitentes que trazia, de modo intencional, e abriu-a à nossa vista, lendo todos nós o versículo quarenta e quatro do capítulo cinco do Evangelho do Apóstolo Mateus:


– “Eu, porém, vos digo – amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem e caluniam.”


O processo de esclarecimento e informação não podia ser mais direto, nem mais educativo. Decorridos alguns instantes, Semprônia exclamou humildemente:


– Compreendo, venerável amigo!


O emissário, sem qualquer afetação dos que ensinam por amor- próprio, comentou:


– Os adversários, quando bem compreendidos e recebidos cristâmente, constituem precioso auxílio em nossa jornada para a União Divina.


A síntese verbal condensava explicações, que somente seriam razoáveis em compactos discursos.


A meu ver, não obstante a beleza e edificação do ensino recolhido, o método não recomendava extensão de perguntas de nosso lado, mas o irmão Raimundo, do grupo socorrista dedicado à assistência aos loucos, tomou a iniciativa e interrogou:


– Tolerante amigo, que fazer ante as dificuldades que me defrontam nos serviços marginais da tarefa?


Interessando a órbita de nossos deveres, junto dos desequilibrados mentais da Crosta Terrestre, venho assistindo certo agrupamento de irmãos encarnados que não estão interpretando as obrigações evangélicas como deviam.

Em verdade, convocam-nos à colaboração espiritual, pronunciando belas palavras, mas no terreno prático se distanciam de todas as atitudes verbais da crença consoladora. Estimam as discussões injuriosas, fomentam o sectarismo, dão grande apreço ao individualismo inferior que desconsidera o esforço alheio, por mais nobilitante que seja esse. Quase sempre, entregam-se a rixas infindáveis e gastam o tempo estudando meios de fazerem valer as limitações que lhes são próprias. Por mais que lhes ensinemos a humildade, recorrendo, não a nós, mas ao exemplo eterno do Cristo, mais se arvoram em críticos impiedosos, não apenas uns dos outros e, sim, de setores e situações, pessoas e coisas que lhes não dizem respeito, incentivando a malícia e a discórdia, o ciúme e o desleixo espiritual. No entanto, reúnem-se metodicamente e nos chamam à cooperação em seus trabalhos. Que fazer, todavia, respeitável orientador, para que maiores perturbações não se estabeleçam?


O mensageiro esperou que o consulente se desse por satisfeito em suas indagações e, em seguida, muito calmo, repetiu a operação anterior, e tivemos, ante os olhos, outro pergaminho, com a inscrição do versículo onze, do capítulo seis, da primeira epístola do Apóstolo Paulo a Timóteo:


– “Mas tu, ó homem de Deus, foge destas coisas e segue a justiça, a piedade, a fé, a caridade, a paciência, a mansidão.”


Permaneceu Raimundo na expectativa, figurando-se-nos não haver interpretado a advertência, quanto devia, mas a explicação sintética do visitante não se fez esperar:


– O discípulo que segue as virtudes do Mestre, aplicando-as a si próprio, foge às inutilidades do plano exterior, acolhendo-se ao santuário de si mesmo, e auxilia os nossos irmãos imprevidentes e perturbados, rixosos e ingratos, sem contaminar-se.


Registrando as palavras sábias de Asclépios, Raimundo pareceu acordar para a verdade e murmurou, com algum desapontamento:


– Aproveitarei a lição.


Novo silêncio verificou-se entre nós.


A irmã Luciana, porém, que nos integrava o pequeno grupo, tomou a palavra e perguntou:


– Esclarecido mentor, esta é a primeira vez que vou à Crosta em tarefa definida de socorro. Podereis fornecer-me, porventura, a orientação de que necessito?


O emissário, que parecia trazer respostas bíblicas preparadas de antemão, desdobrou nova folha e lemos, admirados, o versículo nove do capítulo quatro da primeira epístola do Apóstolo da
Gentilidade aos tessalonicenses:


– “Quanto, porém, à caridade fraternal, não necessitais de que vos escreva, visto que vós mesmos estais instruídos por Deus que vos ameis uns aos outros.”


Algo confundida, Luciana observou, reverente:


– Compreendo, compreendo...


– O Evangelho aplicado – comentou o mensageiro, delicadamente – ensina-nos a improvisar os recursos do bem, nas situações mais difíceis.


Fez-se, de novo, extrema quietude na câmara.


Talvez pelo nosso péssimo hábito de longas conversações sem proveito, adquirido na Crosta Planetária, não encontrávamos grande encanto
naquelas respostas francas e diretas, sem qualquer lisonja ao nosso personalismo dominante.


Rolavam instantes pesados, quando observamos a gentileza e a sensibilidade do diretor do Santuário da Bênção. Notando que Semprônia, Raimundo e Luciana eram alvos de nossa indiscreta curiosidade, Cornélio inquiriu de Asclépios, como se fora mero aprendiz:


– Que fazer para conservar alegria no trabalho, perseverança no bem, devotamento à verdade?


O mensageiro contemplou-o, num sorriso de aprovação e simpatia, identificando-lhe o ato de amor fraternal, e descerrou novo pergaminho, em que se lia o versículo dezesseis do capítulo cinco da primeira carta de Paulo aos tessalonicenses:


– “Regozijai-vos sempre.” Em seguida, falou, jovial:


– A confiança no Poder Divino é a base do júbilo cristão, que jamais deveremos perder. O Instrutor Cornélio meditou alguns momentos e rogou, humilde:


– Ensina-nos sempre, venerável irmão!...


Decorreram minutos sem que os demais utilizassem a palavra.


Fazendo menção de despedir-se, o sublime visitante comentou, afável:


– À medida que nos integramos nas próprias responsabilidades, compreendemos que a sugestão direta nas dificuldades e realizações do caminho deve ser procurada com o Supremo Orientador da Terra. Cada Espírito, herdeiro e filho do Pai Altíssimo, é um mundo por si, com as suas leis e características próprias. Apenas o Mestre tem bastante poder para traçar diretrizes individuais aos discípulos.


Logo após, abençoou-nos, carinhoso, desejando-nos bom ânimo.


Reconfortados e felizes, vimos o mensageiro afastar-se, deixando-nos envoltos numa onda de olente e inexplicável perfume.


Ambos os auxiliares, que se mantinham a postos, retiraram as mãos do gabinete e, depois de várias operações magnéticas efetuadas por eles, desapareceu a pintura mental, voltando a peça de cristal ao aspecto primitivo.


Tornando à conversação livre, indagações enormes oprimiam-me o cérebro. Não me contive. Com a permissão de Jerônimo e liderando companheiros tão curiosos e pesquisadores quanto eu mesmo, acerquei-me de Cornélio e despejei-lhe aos ouvidos grande cópia de interrogações. Acolheu-me, benévolo, e informou:


– Pertence Asclépios a comunidades redimidas do Plano dos imortais, nas regiões mais elevadas da zona espiritual da Terra.


Vive muito acima de nossas noções de forma, em condições inapreciáveis à nossa atual conceituação da vida. Já perdeu todo contacto direto com a Crosta Terrestre e só poderia fazer-se sentir, por lá, através de enviados e missionários de grande poder. 


Apreciável é o sacrifício dele, vindo até nós, embora a melhoria de nossa posição, em relação aos homens encarnados. Vem aqui raramente.

Não obstante, algumas vezes, outros mentores da mesma categoria visitam-nos por piedade fraternal.


– Não poderíamos, por nossa vez, demandar o plano de Asclépios, a fim de conhecer-lhe a grandeza e sublimidade? – perguntei.


– Muitos companheiros nossos – assegurou-nos o instrutor –, por merecimentos naturais no trabalho, alcançam admiráveis prêmios de viagens, não só às esferas superiores do Planeta que nos
serve de moradia, mas também aos círculos de outros mundos...


Sorriu e acrescentou:


– Não devemos esquecer, porém, que a maioria efetua semelhantes excursões somente na qualidade de viajores, em processo estimulante do esforço pessoal, à maneira de jovens estudantes de passagem rápida pelos institutos técnicos e administrativos das grandes nações.


Raros são ainda os filhos do Planeta em condições de representá-lo dignamente noutros orbes e círculos de vida do nosso sistema.

Não me deixei impressionar e prossegui perguntando:


– Asclépios, todavia, não mais reencarnará na Crosta?


O instrutor gesticulou, significativamente, e esclareceu:


– Poderá reencarnar em missão de grande benemerência, se quiser, mas a intervalos de cinco a oito séculos entre as reencarnações.


– Oh! Deus – exclamei – como é grandioso semelhante estado de elevação!


– Constitui sagrado estímulo para todos nós – ajuntou o mentor atenciosamente. – Devemos acreditar – interroguei, admirado – seja esse o mais alto grau de desenvolvimento espiritual no Universo?


O diretor da casa sorriu, compassivo, em face de minha ingenuidade
e considerou:


– De modo algum. Asclépios relaciona-se entre abnegados mentores da Humanidade Terrestre, partilha da soberana elevação da coletividade a que pertence, mas, efetivamente, é ainda entidade do nosso Planeta, funcionando, embora, em círculos mais altos de vida. Compete-nos peregrinar muito tempo, no campo evolutivo, para lhe atingirmos as pegadas; no entanto, acreditamos que o nosso visitante sublime suspira por integrar-se no quadro de representantes do nosso orbe, junto às gloriosas comunidades que habitam, por exemplo, Júpiter e Saturno. Os componentes dessas, por sua vez, esperam, ansiosos, o instante de serem convocados às Divinas assembléias que regem o nosso sistema solar. Entre essas últimas, estão os que aguardam, cuidadosos e vigilantes, o minuto em que serão chamados a colaborar com os que sustentam a constelação de Hércules, a cuja família pertencemos. Os que orientam nosso grupo de estrelas aspiram, naturalmente, a formar, um dia, na coroa de gênios celestiais que amparam a vida e dirigem-na, no sistema galáctico em que nos movimentamos. E sabe meu amigo que a nossa Via-Láctea, viveiro e fonte de milhões de mundos, é somente um detalhe da Criação Divina, uma nesga do Universo!...


As noções de infinito encerraram a reunião encantadora no Santuário da Bênção. Cornélio estendeu-nos a mão, almejandonos felicidade e paz, e despedimo-nos, sob enorme impressão, entre a saudade e o reconhecimento.
4 - A Casa Transitória

Depois de viagem normal, através dos caminhos comuns, alcançamos
nevoenta região, onde asfixiante tristeza parecia imperar incessantemente. De outras vezes, eu já atravessara sítios semelhantes,
gastando apenas alguns minutos. Agora, porém, era compelido a longa marcha em sentido horizontal. Atendendo a imperativos da missão, o Assistente Jerônimo procurava certa localidade, sob a denominação expressiva de “Casa Transitória de Fabiano”.


Tratava-se de grande instituição piedosa, no campo de sofrimentos mais duros em que se reúnem almas recém-desencarnadas, nas cercanias da Crosta Terrestre, a qual, segundo nos informou o chefe da expedição, fora fundada por Fabiano de Cristo, devotado servo da caridade entre antigos religiosos do Rio de Janeiro, desencarnado há muitos anos. Organizada por ele, era confiada, periodicamente, a outros benfeitores de elevada condição, em tarefa de assistência evangélica, junto aos Espíritos recém-desligados do plano carnal.


– Na Casa Transitória – prosseguia Jerônimo, explicando-nos – prestaremos o auxílio que nos seja possível à organização e asilaremos, em seguida, os irmãos que nos cabe socorrer. Não fossem esses pousos de amor, tornar-se-ia muito difícil nosso trabalho.


Raramente encontramos companheiros carnais em condições de atravessarem semelhante zona, imediatamente após a morte física. Quase todos permanecem estonteados, nos primeiros dias.


Se entregues à própria sorte, seriam fatalmente agredidos pelas entidades perversas, ou habilmente desviados por elas do bom caminho de restauração gradual das energias interiores. Daí a necessidade desses abrigos fraternais, em que almas heróicas e dedicadas ao sumo bem se consagram a santificadas tarefas de amparo e vigilância.


Após breve pausa, concluiu:


– Além disso, teremos aí todo o equipamento necessário aos trabalhos que nos cumpre realizar.


Curioso, guardei silêncio e esperei.


Não se passou muito tempo, defrontava-nos casarão enorme em plena sombra. Nada que evidenciasse preocupação artística e bom gosto na construção. Nem árvores, nem jardins em torno. A edificação baixa e simples mal se destacava no nevoeiro denso.


Certo, percebendo-me a estranheza, Jerônimo esclareceu:


– O nome do instituto, André, fala por si mesmo.


Temos, à frente, acolhedora casa de transição, destinada a socorros urgentes.

Embora seu assombro natural, é asilo móvel, que atende segundo as circunstâncias do ambiente. Sofre permanente cerco de Espíritos desesperados e sofredores, condenados pela própria consciência à revolta e à dor. Suas defesas magnéticas exigem considerável número de servidores e os amigos da piedade e da renunciação, que aí atendem, passam dia e noite ao lado do sofrimento.


Todavia, o trabalho desta Casa é dos mais dignos e edificantes.


Neste edifício de benemerência cristã, centralizam-se numerosas expedições de irmãos leais ao bem, que se dirigem à Crosta Planetária ou às esferas escuras, onde se debatem na dor seres angustiados e ignorantes, em trânsito prolongado nos abismos tenebrosos. Além disso, a Casa Transitória de Fabiano, à maneira de outras instituições salvadoras que representam verdadeiros templos de socorro nestas regiões, é também precioso ponto de ligação com as nossas cidades espirituais em zonas superiores.


Nesse instante, antes que Jerônimo pudesse prosseguir nos esclarecimentos, atingimos as barreiras magnéticas, a distância de alguns metros do portão de acesso ao interior. Atendidos por trabalhadores vigilantes, que sem hesitação nos ofereceram passagem, acionamos pequeno aparelho que nos ligou, de pronto, ao porteiro prestativo.


Não decorreram muitos minutos e achamo-nos diante de figura respeitável. Não supunha que a instituição estivesse administrada por mãos sensíveis de mulher. A irmã Zenóbia, aparentando idade madura e aureolada de cabelos negros, proporcionava-nos informações vivas de sua energia e admirável capacidade de trabalho, através dos olhos transbordantes de luz.


Saudou-nos, cortês, sem despender muitas palavras, passando imediatamente ao assunto que a nossa presença sugeria:


– Fui avisada ontem – disse, bondosa – de que a missão chegaria hoje e rejubilamos com isso.


– Ao seu dispor – explicou-se Jerônimo, com gentileza. – Este abrigo de amor e paz cooperará conosco, asilando-nos alguns tutelados convalescentes, e, por nossa vez, desejamos ser úteis à casa, de algum modo.


Zenóbia envolveu-nos num sorriso de simpatia acolhedora e, após rápidos minutos de silêncio, considerou:


– Aceitamos o concurso. Reconheço a presença dum grupo harmonioso e, desde a semana finda, aguardava ensejo, não só para beneficiar a coletividade sofredora de abismo próximo, senão também a fim de socorrer certo irmão nosso, muito infeliz. Trata-se de pessoa que me foi particularmente querida e que apenas agora foi encontrada em remota região de seres decaídos.


Vencendo obstáculos, trouxemo-la para a vizinhança da Casa; porém, o perigoso estado em que se encontra não nos autoriza a fornecer-lhe abrigo e, sim, proteção indireta. Já estabelecemos medidas em favor da remoção desse infortunado amigo para a zona da Crosta, onde será brevemente internado em reencarnação expiatória, com auxílio divino. Entretanto, precisarei pessoalmente da colaboração fraternal dos companheiros, em benefício do transviado...

– Sem dúvida – atalhou Jerônimo, desvanecido –, teremos prazer.


Designando a devotada enfermeira que nos acompanhava, acrescentou:


– Em nossa companhia, permanece a irmã Luciana, que nos pode ser extremamente útil nesse caso particular, em virtude das suas adiantadas faculdades de clarividência.


A diretora da Casa Transitória fixou o olhar sereno em nossa colaboradora, sorriu, amável, e prosseguiu:


– Bem lembrado. Alguns irmãos, qual ocorre a esse a que me refiro, descem a tamanho embrutecimento moral que somente conseguem ouvir-nos a voz de modo imperfeito e, não lhes sendo possível identificar-nos pela visão, em face dos impedimentos vibratórios criados por eles mesmos, duvidam de nossa amizade e de nossos propósitos elevados de cooperação. No fato presente, o concurso de Luciana ser-me-á precioso.


Não podia disfarçar o meu constrangimento ante aquele pormenor da conversação. Por que motivo a irmã Zenóbia, orientando instituição como aquela, necessitaria de nossa colaboração, mormente no capítulo da clarividência mencionada? Porventura, não poderia também esquadrinhar os problemas de almas sofredoras e decaídas?


Incapaz de sopitar a interrogação, observei, admirado:


– Oh! quer dizer que os benfeitores daqui não podem ver quanto desejam?


Foi o Assistente Jerônimo quem veio ao meu encontro.


– Antes de tudo, André – falou, compassivo –, faz-se necessário considerar que a irmã Zenóbia, não obstante a sua extensa visão espiritual, terá razões íntimas para invocar a providência.


Quanto ao mais, não devemos esquecer os imperativos da especialização.


A resposta tivera efeito de ducha gelada. 


Arrependera-me de haver formulado a interrogação indiscreta. Completando, porém, o ensinamento, Jerônimo continuou:

– Senão, vejamos: o padre Hipólito consagra-se, atualmente, à interpretação das leis divinas, no serviço educativo àqueles que as desconhecem, enquanto a irmã Zenóbia atende a sofredores, em massa, nesta casa de amor Cristão. 


Claro que poderiam exercitar a clarividência, com benefícios generalizados para o próximo, mas com prejuízo manifesto dos deveres imediatos. Isso não ocorre com Luciana que, pelo contacto individual e intenso com os enfermos, durante muitos anos consecutivos, especializou-se em penetrar-lhes o mundo mental, trazendo à tona suas idéias, ações passadas e projetos íntimos, em atividade beneficente. Se entrássemos nós outros, de improviso, em relação com a sua clientela, veríamos “alguma coisa”, embora, não tanto e tão bem quanto pode ser observado por ela, em vista de suas dilatadas experiências.

A seu turno, Luciana poderia, de imediato, interpretar os ensinamentos Divinos e orientar esta casa, “de algum modo”, mas não tanto e tão bem quanto o padre Hipólito e a irmã Zenóbia, considerando-lhes os vastos conhecimentos nesse sentido. Todas as aquisições espirituais exigem perseverança no estudo, na observação e no serviço aplicado. E devemos considerar que isso não infirma a necessidade de aprender sempre. O músico exímio poderá ser aprendiz incipiente da Química, destacando-se, mais tarde, nesse campo científico, como se verifica na arte dos sons.


Não alcançará, todavia, a realização, sem gastar tempo, esforço e boa vontade. Aliás, o próprio Mestre assegurou que o homem encontrará aquilo que procurar. Sorrindo de minha interrogação, que provocara ensinamentos tão rudimentares, concluiu:


– A busca de dons espirituais para a vida eterna não representa serviço igual à cata de objetos perdidos na Crosta.


Interveio a irmã Zenóbia, acrescentando fraternalmente:


– Sim, não podemos edificar todas as qualidades nobres de uma só vez. Cada trabalhador fiel ao seu dever possui valor específico, incontestável. A Obra Divina é infinita.


Tornando ao primitivo rumo da conversação, prosseguiu:


– Quando dispomos de clarividentes nos serviços de socorro ao abismo, em circunstâncias favoráveis, conseguimos resultados de preciosa eficiência. Os servidores dessa natureza, porém, são poucos, em vista da multiplicidade das tarefas, e raros se dispõem a servir nas paisagens escuras da angústia infernal. Luciana, chamada nominalmente à palestra, esclareceu que teria satisfação em cooperar e contou-nos que buscara desenvolver as faculdades de que era portadora, a fim de socorrer, noutro tempo, o Espírito de seu pai, desencarnado numa guerra civil. Tivera ele preponderância no movimento de insurreição pública e permanecia nas esferas inferiores, alucinado pelas paixões políticas. Depois de paciente auxílio, reajustara emoções, obtendo possibilidades de reencarnar em grande cidade brasileira, para onde ela mesma, Luciana, seguiria também logo pudesse o genitor do pretérito organizar novo lar, restabelecendo-se a aliança de carinho e de amor, segundo o projeto por ambos estabelecido.


Zenóbia ouvia com atenção.


Percebendo talvez que a palestra tendia para o campo do personalismo direto, em minutos para os quais provavelmente a diretora da casa teria outros compromissos, Jerônimo interferiu na
conversação e dirigiu-se a ela, atencioso: – Estamos satisfeitos, irmã, pela perspectiva de algum concurso amigo, ao seu lado. 


Compreendemos a grandeza de sua missão nobilitante e, se vamos depender tanto de seu generoso amparo, nesta casa, constitui-nos obrigação cooperar com a irmã nos trabalhos em que nossa humilde colaboração possa ser útil. 

Seguiremos, amanhã, para a zona carnal. Entretanto, logo que nos seja possível trazer para sua companhia o primeiro irmão libertado,
André e eu permaneceremos em trânsito, entre a Crosta e este abençoado asilo, enquanto Hipólito e Luciana se demorarão aqui, velando pelos convalescentes e colaborando, junto da irmã, nas tarefas imediatas.


– Alegra-me sobremaneira a expectativa! – falou a diretora, evidentemente satisfeita.


Nesse instante, invisível campainha ressoou, estridente, com estranha entonação.


Não decorreram cinco segundos e alguém penetrou a sala, rumorosamente. Era determinado servo da vigilância, que anunciou, precipite:


– Irmã Zenóbia, aproximam-se entidades cruéis. A agulha de aviso indicou a direção norte. Devem estar a três quilômetros, aproximadamente.


A orientadora empalideceu ligeiramente, mas não traiu a emoção com qualquer gesto que denunciasse fraqueza.


– Acendam as luzes exteriores! – ordenou – todas as luzes! E liguem as forças da defesa elétrica, reforçando a zona de repulsão para o norte. Os invasores desviar-se-ão.


Retirou-se apressadamente o emissário, enquanto pesado silêncio abatia-se sobre nós. Luciana fizera-se lívida. Jerônimo e Zenóbia demonstravam, através do olhar, asfixiante preocupação.


Registrar-se-iam fatos que eu ignorava? Será que Espíritos reconhecidamente maus também organizavam expedições semelhantes às que realizávamos para o bem? Que espécie de entidades seriam aquelas, para infundirem tamanha preocupação nos dirigentes esclarecidos e virtuosos de nossos trabalhos e tão grande terror nos subordinados daquela casa de amor Cristão? 


Impressionara-me a expressão facial de dor e incerteza do servidor que trouxera a notícia. Seriam tantos os malfeitores das sombras para justificar semelhante pavor? Sentia o raciocínio extremamente reduzido para comportar a imensidade das interrogações que me afloravam à mente.

Através de minúscula abertura, notei que enormes holofotes se acendiam de súbito, no exterior, como as luzes de grande navio assaltado por nevoeiro denso em zona perigosa.


Ruídos característicos faziam-se sentir à nossa audição, informando- nos que aparelhos elétricos haviam sido postos em funcionamento.


– É lamentável – exclamou Zenóbia, com a manifesta intenção de restaurar-nos a tranqüilidade – que tantas inteligências humanas, desviadas do bem e votadas ao crime, se consagrem aqui ao prosseguimento de atividades ruinosas e destruidoras.


Nenhum de nós ousou dizer qualquer palavra.


A diretora, porém, esforçando-se por sorrir, continuou:


– A tragédia bíblica da queda dos anjos luminosos, em abismos de trevas, repete-se todos os dias, sem que o percebamos em sentido direto. Quantos gênios da Filosofia e da Ciência dedicados à opressão e à tirania! quantas almas de profundo valor intelectual se precipitam no despenhadeiro de forças cegas e fatais! Lançados ao precipício pelo desvio voluntário, esses infelizes raramente se penitenciam e tentam recuo benéfico... Na maioria das vezes, dentro da terrível insatisfação do egoísmo e da vaidade, insurgem-se contra o próprio Criador, aviltando-se na guerra prolongada às suas Divinas obras. Agrupam-se em sombrias e devastadoras legiões, operando movimentos perturbadores que desafiam a mais astuta imaginação humana e confirmam as velhas descrições mitológicas do inferno.


Observando-me, possivelmente, a angústia íntima, em face de suas considerações, irmã Zenóbia acrescentou:


– Chegará, porém, o dia da transformação dos gênios perversos, desencarnados, em Espíritos lucificados pelo bem Divino.


Todo mal, ainda que perdure milênios, é transitório.


Achamo-nos apenas em luta pela vitória imortal de Deus, contra a inferioridade do “eu” em nossas vidas. Toda expressão de ignorância é fictícia.

Somente a sabedoria é eterna.


Por minha vez, gostaria de formular várias indagações, porém a expectativa fizera-se mais pesada.


– Alguns séculos – prosseguiu a diretora – de reencarnações terrestres constituem tempo escasso para reeducar inteligências pervertidas no crime. É por isso que os trabalhos retificadores continuam vivos, além da morte do corpo físico, obrigando os servos da verdade e do bem a suportar os irmãos menos felizes, até que se arrependam e se convertam...


Indefiníveis ruídos alcançaram-nos o ouvido, e Zenóbia, pálida, calou-se igualmente. Em poucos segundos, tornaram-se mais nítidos. Eram gritos aterradores, como se a curta distância devêssemos afrontar hordas de enraivecidos animais ferozes.


Entre nós, Luciana parecia a mais atemorizada.


Torcia nervosamente as mãos, até que, não lhe sendo possível suportar por mais tempo a inquietação, dirigiu-se à diretora da casa, suplicando:


– Irmã, não será conveniente endereçarmos fervorosa rogativa a Deus? conheço os monstros. Tentaram, muita vez, arrebatar meu pai do sitio a que se recolhera!... Zenóbia sorriu com benevolência e respondeu:


– Já fiz meus atos devocionais de hoje, preparando-me para as ações eventuais do trabalho no decurso do dia.


Aliás, minha amiga, nossa ansiosa expectativa, em si mesma, vale por súplica ardente. Decidamos, pois, qualquer problema a sobrevir, com resolução e confiança em Nosso Pai e em nós próprios.

A esse tempo, tornara-se enorme o vozerio. Pus-me, assombrado, a identificar rugidos estridentes de leões e panteras, casados a uivos de cães, silvos de serpentes e guinchos de macacos.


Em dado momento, ouvimos explosões ensurdecedoras. Quase no mesmo instante, certo auxiliar penetrou o recinto e comunicou:


– Atacam-nos com petardos magnéticos.


A diretora resoluta ouviu, serena, e determinou:


– Emitam raios de choque fulminante, assestando baterias.


As farpas elétricas deviam ser atiradas em silêncio, porque as explosões diminuíram até à extinção total, percebendo-se que a horda invasora se desviara noutro rumo, pelo ruído a perder-se distante.


Respiramos aliviados.


Estampou-se confortadora expressão na fisionomia de Zenóbia, que falou, satisfeita:


– Agora, peçamos ao Mestre conceda aos infelizes o caminho adequado às suas necessidades.


Escoaram alguns minutos, nos quais elevamos pensamentos de gratidão e júbilo ao Cristo Salvador.


Tornando à palavra livre, considerei: – Que impressionantes rugidos ouvimos! não se figuravam lamentos de corações sofredores, mas algazarra de feras soltas.


Terrível novidade!...


– Esses bandos, porém – observou a diretora. sensatamente –, são antigos. Entre as narrações evangélicas, ao tempo da passagem de Nosso Senhor pelas estradas humanas, lemos o noticiário alusivo às legiões dos gênios diabólicos.


Enquanto concordávamos, em silêncio, prosseguiu, compungida:


– Enraízam-se os pobrezinhos tão intensamente nas idéias e propósitos do mal e criam tantas máscaras animalescas para si mesmos, em virtude da revolta e da desesperação a lhes consumirem a alma, que adquirem, de fato, a semelhança de horrendos monstros, entre a humanidade e a irracionalidade.


Antes que pudesse continuar nas observações tristes, penetrou um assessor no salão e dirigiu-se à orientadora do instituto:


– Irmã Zenóbia, ambos os desequilibrados que deram entrada, anteontem, romperam as celas e tentam fugir.


A orientadora atalhou a notificação, expedindo ordem:


– Prendam-nos, imediatamente, com a colaboração dos vigilantes.


Temos responsabilidade. A expedição que no-los confiou regressará amanhã, nas primeiras horas.


Encontrava-se o cooperador junto à porta de saída, quando outro auxiliar apareceu, atento.


– Irmã – disse, respeitoso –, as notas da Crosta chegaram agora.


O chefe da missão Figueira, em atividade desde a semana finda, pede sejam preparadas acomodações para três recém desencarnados, depois de amanhã.


– Tomarei providências – informou a diretora sem se alterar. Íamos reiniciar a palestra, mas aproximou-se uma jovem serviçal, fazendo também sua participação:


– Irmã Zenóbia, a turma de vigilância, que descansou há três dias, voltou a postos.


– Mande-a retomar os lugares – recomendou ela – e que os irmãos exaustos repousem convenientemente.


Afastou-se a ativa emissária e, quando eu pretendia, por minha vez, comentar a movimentação de trabalho da casa, outro colaborador assomou à porta e avisou:


– Irmã, a expedição Fabrino pede auxílio da Crosta para os serviços das reencarnações expiatórias de que se encontra encarregada.


A mensagem assinala serviço urgente para noite próxima.


Que devo responder?


A orientadora refletiu um pouco e ordenou:


– Transmita o comunicado aos irmãos Gotuzo e Hermes. Estarão talvez disponíveis. Mais tarde, expediremos resposta.


Pretendíamos retomar a instrutiva conversação, mas, em se fazendo novo silêncio, outro ajudante, de fisionomia visivelmente alterada, surgiu à porta para informar:


– Irmã Zenóbia, a Nota do Dia, vinda do Plano Superior, manda comunicar-lhe que os desintegradores etéricos passarão por aqui amanhã.


– Oh! o fogo?!... – replicou a diretora, patenteando agora inexcedível emoção. – Bem o suspeitei – ponderou, acrescentando:


– o nosso ambiente está conturbado. A passagem dos monstros é sinal de que a limpeza será urgente.


E, fixando os olhos penetrantes no colaborador, prosseguiu:


– Solicitemos a cooperação das congêneres mais próximas.


Precisamos apelar para o Oratório de Anatilde e para a Fundação Cristo. Tente a ligação. Irei, eu mesma, fazer o pedido. Afastando-se o assessor, Zenóbia voltou-se para nós, cheia de
bondade:


– Segundo observam, meus amigos, desta vez devo levantar-me e agir. Quando o fogo etérico vem queimar os resíduos da região, somos obrigados a transportar-nos com a instituição, a caminho de outra zona. Necessito movimentar providências, relativas à nova localização, e rogar o socorro de outras casas especializadas.


Dirigindo-se, particularmente, a Jerônimo, acentuou:


– Meu irmão, já que o inesperado me surpreende, estimaria visitar o abismo, ainda hoje, em companhia dos amigos. Além do serviço à coletividade sofredora, conforme notifiquei a princípio, interesso-me por irmão nosso, em doloroso estado de cegueira espiritual, a favor de quem estou autorizada a fazer serviços intercessórios.


– De perfeito acordo – respondeu nosso chefe, atenciosamente.


Depois de levar a efeito alguns sinais de chamada, a diretora da Casa Transitória de Fabiano confiou-nos ao cuidado de Heráclio, abnegado cooperador da instituição, e se afastou.


Fomos, então, convidados pelo novo amigo a visitar o interior e, em breve, apresentava-nos extensos dormitórios e estreitos cubículos, em que se localizavam doentes e necessitados de vários matizes. Atravessamos, igualmente, compridas salas de estudo e complicados laboratórios, notando-se que ali todo o espaço era rigorosamente aproveitado.


Em certo ponto da conversação, o delicado companheiro que nos acolhia, percebendo a curiosidade com que examinávamos a parte interna do edifício, erguido à base de substância singularmente leve, esclareceu: – É tipo de construção para movimento aéreo. Muda-se, sem maiores dificuldades, de uma região para outra, atendendo às circunstâncias.


E, sorrindo:


– Por isso, é denominada “Casa Transitória”.


Em breves minutos, o Assistente Jerônimo era chamado nominalmente pela irmã Zenóbia, para entendimento particular.


Hipólito e Luciana solicitaram ingresso na Sala Consagrada, onde, conforme explicações de Heráclio, administradores, auxiliares e asilados daquele pouso de amor se reuniam habitualmente para os serviços divinos da prece. Interessado, por minha vez, nos trabalhos médicos do instituto, indaguei quanto à possibilidade de encontrar algum colega que me fornecesse novos elementos educativos.


Expondo ao prestativo assessor meus desejos, respondeu-me sem hesitar:


– Já sei o que pretende. No momento, temos em casa o irmão Gotuzo, cujas informações talvez lhe satisfaçam a curiosidade.

1 - Convite Ao Bem Antes de iniciar os trabalhos de nossa expedição socorrista, o Assistente Jerônimo conduziu-nos ao Templo da Paz, na ...