11 - Amigos Novos
Conduzindo equipamento indispensável ao trabalho, despedimo-nos da instituição socorrista, colocando-nos a caminho da Crosta. Jerônimo dava-se pressa em auscultar os vários ambientes em que se verificaria nossa atuação.
Programou a tarefa com simplicidade e bom senso. Não nos distrairÃamos com quaisquer investigações, além da missão previamente esboçada, e manter-nos-Ãamos em ligação incessante com a Casa Transitória, para maior eficiência no dever a cumprir.
– Naturalmente – explicou – seremos forçados a diversas atividades de assistência aos amigos prestes a se desfazerem dos elos corporais do plano grosseiro e a fundação de Fabiano será o nosso ponto principal de referência no trabalho. Nos instantes de sono, conduzi-los-emos até lá, para que se habituem lentamente com a idéia de afastamento definitivo.
Intrigado, ao verificar tanta cautela, perguntei:
– Meu caro Assistente, todas as mortes se fazem acompanhar de missões auxiliadoras? Cada criatura que parte da Crosta precisa de núcleos de amparo direto?
O amigo sorriu com indulgência, na superioridade legÃtima dos que ensinam sabiamente, e esclareceu:
– Absolutamente. Reencarnações e desencarnações, de modo geral, obedecem simplesmente à lei. Há princÃpios biogenéticos orientando o mundo das formas vivas ao ensejo do renascimento fÃsico e princÃpios transformadores que presidem aos fenômenos da morte, em obediência aos ciclos da energia vital, em todos os setores de manifestação. Nos múltiplos cÃrculos evolutivos, há trabalhadores para a generalidade, segundo sábios desÃgnios do Eterno; entretanto, assim como existem cooperadores que se esforçam mais intensamente nas edificações do progresso humano, há missões de ordem particular para atender-lhes as necessidades.
Sentindo-me a estranheza, Jerônimo prosseguiu:
– Não se trata de prerrogativa injustificável, nem de compensações de favor. O fato revela ordenação de serviços e aproveitamento de valores. Se determinado colaborador demonstra qualidades valiosas no curso da obra, merecerá, sem dúvida, a consideração daqueles que a superintendem, examinando-se a extensão do trabalho futuro. No plano espiritual, portanto, muito grande é o carinho que se ministra ao servidor fiel, de modo a preservar-lhe o devotado EspÃrito da ação maléfica dos elementos destruidores, com o desânimo e a carência de recursos estimulantes, permitindo-se, simultaneamente, que ele possa ir analisando a magnitude de nosso ministério na verdade e no bem, em face do Universo infinito.
Ouvindo-lhe a elucidação, lembrei-me instintivamente dos tipos apostólicos que conhecera na experiência humana. Não haveria contradição no esclarecimento? Os padres virtuosos, com os quais mantivera contacto no mundo, eram pessoas perseguidas através de todos os flancos. Notava que criaturas de mais subido valor moral eram justamente as escolhidas para o assédio da calúnia constante. Sem relacionar apenas os de minha intimidade, recordava a própria história do Cristianismo. Não era porventura, cheia de exemplos? Os temperamentos, por muitos anos fervorosos na fé, haviam sido pasto de feras. Os continuadores do Mestre foram vÃtimas de tremendas provações e Ele mesmo alcançara o Calvário em passadas dolorosas...
O Assistente percebeu o jogo de raciocÃnios que se me desdobrava no Ãntimo e esclareceu: – Suas objeções mentais não têm razão de ser. A concepção humana do socorro Divino é viciada desde muitos séculos. A criatura pressupõe no amparo de Deus o protecionismo do sátrapa terrestre. Espera perpetuidade de favores materialÃsticos, injustificável destaque entre os menos felizes, dominação e louvor permanentes.
Costuma aguardar serviço, estima e entendimento, mas desdenha servir, estimar e entender, quando não seja em retribuição.
O subsÃdio celeste traduz-se por benditas oportunidades de trabalho e renovação; chega, muitas vezes, ao cÃrculo da criatura, como se foram gloriosas feridas, magnÃficas dores, abençoados suplÃcios. Enquanto predominem na Crosta Planetária os impulsos de animalidade primitiva, os agraciados pela bênção divina serão, em sua maior parte, representantes do poder espiritual, os quais, de maneira alguma, ficarão isentos de testemunhos difÃceis nas demonstrações imprescindÃveis.
Não que o Senhor intente transformar discÃpulos em cobaias, mas pela imposição natural da obra educativa em que a lição do aluno atento e fiel deve interessar à classe inteira. O que quase sempre parece sofrimento e tentação, constitui bem-aventurança transformando situações para o bem e para a felicidade eterna.
O argumento era lógico e incisivo. E porque o Assistente silenciasse, cogitando, talvez, do objetivo fundamental que nos conduzia ao trabalho previsto, procurei reter impulsos indagadores.
Orientados por Jerônimo, atingÃramos pequena cidade do interior e dirigimo-nos a certa casa humilde, na qual, em breves minutos, nos apresentava ele determinado companheiro, em lamentáveis condições, atacado de cirrose hipertrófica.
– É Dimas! – exclamou, indicando o enfermo – assÃduo colaborador dos nossos serviços de assistência, faz muitos anos.
Veio de nossa colônia espiritual, há pouco mais de meio século, consagrando- se a tarefa obscura para melhor atender aos divinos desÃgnios. Desenvolveu faculdades mediúnicas apreciáveis, colocando-se a serviço dos necessitados e sofredores.
O quarto modesto permanecia cheio de radiosos eflúvios, denunciando a incessante visitação de EspÃritos iluminados.
– Nosso amigo – continuou o Assistente – fez-se o credor feliz de inúmeras dedicações pela renúncia com que sempre se conduziu no ministério. Agora, é chegado para ele o tempo do descanso construtivo.
Agradavelmente surpreendido, reparei que o doente se apercebeu da nossa presença. Cerrou os olhos do corpo, enxergou-nos com a visão da alma e animou-se, sorrindo...
O enfraquecimento fÃsico atingira o ápice e Dimas conseguia deixar o aparelho corporal, de certo modo, com extraordinária facilidade.
Vendo-nos, perto do leito, pôs-se em ardente rogativa, pedindo-nos colaboração. Estava exausto, dizia; no entanto, mantinha-se calmo e confiado.
Aconselhado por Jerônimo, acerquei-me do enfermo, aplicando-lhe passes magnéticos de alÃvio sobre o tecido conjuntivo vascular. O abdômen conservava-se pesado e enorme. Revelaram-se, porém, sensações imediatas de reconforto.
Seguindo-se ao meu auxÃlio humilde, Jerônimo dirigiu-lhe palavras de encorajamento e prometeu voltar, mais tarde.
Dimas, enlevado, endereçava ao Céu comovedor agradecimento.
Em breves momentos, dois amigos espirituais dele vieram ter ao quarto, saudando-nos atenciosamente.
Nosso dirigente convidou-nos à retirada, explicando-nos, depois que nos havÃamos afastado: – Após rápida visita aos interessados, reuni-los-emos em sessão de esclarecimento, na Casa Transitória, de maneira a prepará-los para o fenômeno próximo da libertação definitiva. Esperaremos a noite para esse fim.
Da pequena cidade em que se localizava o primeiro visitado, dirigimo-nos ao Rio de Janeiro.
Utilizávamos a volitação, prazerosos e felizes.
Muito difÃcil descrever a sensação de leveza e alegria inerente a semelhante estado, após a permanência na escura região de que procedÃamos.
Fala-se, muitas vezes, entre os encarnados, na possibilidade da criação do aparelho de vôo individual; todavia, ainda que se efetive a nova conquista, o peso do corpo fÃsico, os cuidados exigidos pela máquina de propulsão e os riscos de viagem não podem, de modo algum, substituir a segurança e a tranqüilidade que nos enchem de tamanho bem-estar. Após a excursão normal, entre a Casa Transitória de Fabiano e a Crosta Terrestre, dentro de harmoniosas condições conservávamo-nos descansados e bem dispostos, operando muito facilmente a volitação, não obstante a densidade atmosférica.
Poucas vezes se me apresentara tão belo o espetáculo da paisagem terrena. Serras e vales, rios e arrolos marcando cidades e vilarejos, sob o espelho rutilante do Sol, falavam-me ao coração da misericórdia do AltÃssimo congregando as criaturas em ninhos floridos de trabalho pacÃfico.
Pensamentos de louvor ao Eterno Pai felicitavam-me o espÃrito.
O casario compacto do Rio achava-se agora à nossa vista.
Não decorreu muito tempo e penetramos singular residência, em bairro menos populoso, e deparamos com enternecedora paisagem doméstica. Cavalheiro na idade madura, deitado em pequeno divã, apresentando terrÃveis sinais de tuberculose adiantada, sustentava comovente palestra, dirigindo-se a dois pequeninos que aparentavam seis e oito anos, respectivamente.
Formosa expressão de luz aureolava a mente do enfermo, que pousava nas crianças o olhar muito lúcido, falando-lhes paternalmente.
O próprio Jerônimo parou, a ouvi-lo, junto de nós, agradavelmente surpreendido.
– Papai, mas o senhor acredita que ninguém morre? – indagou o filhinho mais velho.
– Sim, Carlindo, ninguém desaparece para sempre e é por isso que desejo aconselhá-los, como pai que sou.
Fez-se-lhe mais terno o olhar e continuou, ante o interesse agudo dos meninos:
– Creio que não me demorarei a partir...
– Para onde papai? – atalhou o menor.
– Para um mundo melhor que este, para lugar, meu filho, onde seu pai possa ajudá-los num corpo são, embora diferente.
As crianças, de olhos úmidos, protestaram, com carinho.
Esforçou-se o genitor, de modo visÃvel, para dominar-se e prosseguiu:
– Não devem manifestar semelhantes receios. Já organizei todos os negócios e a mamãe trabalhará, substituindo-me, até que vocês cresçam e se façam homens. Se eu pudesse, ficaria em casa, mas, como se arranjariam comigo, assim, imprestável como estou?
Por essa razão, Deus me concederá outro corpo e eu estarei com vocês, sem que me vejam.
Sorriu, conformado, e ajuntou:
– Possivelmente, seremos até mais felizes... Há muitos dias pretendo falar-lhes, como agora, para que fiquem certos de meu amor constante. Logo após meu afastamento, sei de antemão que muita gente procurará desanimá-los. Dir-se-á que me afastei para nunca mais voltar, que a sepultura me aniquilou; entretanto, previno a vocês de que isso não é verdade. Viveremos sempre e amar-nos-emos uns aos outros, cada vez mais...
Reparei que o genitor doente sentia intenso desejo de afagar os rapazinhos, mas, controlado pela ameaça de contaminá-los, impunha imobilidade às mãos sequiosas de contacto afetivo.
Os meninos enxugavam as lágrimas discretas e, depois de longa pausa, tornou o enfermo, dirigindo-se ao filho mais velho:
– Diga-me, Carlindo, você acredita que seu pai venha a desaparecer?
Admite, porventura, que nosso amor e nossa união em casa, que nosso carinho e entendimento sejam apenas cinza e nada?
Dominou-se o pequeno, a fim de parecer valente, e respondeu:
– Eu acredito, como o senhor, que a morte não existe.
– Quando eu partir – acentuou o pai amoroso –, se vocês demonstrarem coragem e confiança em Deus, o papai estará mais corajoso e confiante e restaurará, em pouco tempo, as energias...
Houve comovente interregno, que o Assistente Jerônimo não desejou quebrar, tal a significação moral da cena cariciosa.
De olhos fixos nos rapazinhos, o extremoso genitor passou a considerar:
– Vai para três anos, instituÃmos nosso culto doméstico do Evangelho de Jesus. E vocês sabem hoje que nosso Mestre não morreu. Levado ao suplÃcio e à morte, voltou do sepulcro para orientar os amigos e continuadores. Ele, pois, nos auxiliará para que prossigamos unidos. Quando eu fizer a viagem da renovação, tenham calma e otimismo. Não chorem, nem desfaleçam. Com lágrimas não serão úteis à mamãe, que precisará naturalmente de todos nós. Deus espera que sejamos alegres na luta de cada dia para sermos filhos fiéis ao seu Divino amor.
Nesse instante, apareceu a dona da casa, impondo modificações à palestra.
Valeu-se Jerônimo da circunstância para intervir, apresentando:
– Nosso amigo Fábio, em véspera da libertação, sempre colaborou com dedicação nas obras do bem.
Não é médium com tarefa, na acepção vulgar do termo. É, porém, homem equilibrado, amante da meditação e da espiritualidade superior e, em razão disso, desde a juventude tornou-se excelente ministrador de energias magnéticas, colaborando conosco em relevantes serviços de assistência oculta. Vários mentores de nossa colônia têm em alta conta o seu concurso. Há muitos anos que se consagra ao estudo das questões transcendentes da alma e formou-se na academia do esforço próprio, a fim de ser-nos útil.
Livre de sectarismo, infenso às paixões e amante do dever, nosso irmão Fábio instituiu, desde os primeiros dias de matrimônio, o culto doméstico da fé viva, preparando a esposa, os filhinhos e outros familiares no esclarecimento dos problemas essenciais da compreensão da vida eterna.
Em virtude da perseverança no bem que lhe caracterizou as atitudes, sua libertação ser-lhe-á agradável e natural. Soube viver bem, para bem morrer.
Aproximei-me do enfermo, perscrutando-lhe a situação orgânica.
A tuberculose minara-lhe os pulmões, impressionando-me as formações cavitárias e outros sintomas clássicos da terrÃvel moléstia.
Fábio, a rigor, não precisava apoio para a fé que nutria. Revelava-se tranqüilo e confiante e, embora o abatimento, natural em seu estado, ia ensinando, aos seus, inesquecÃveis lições de coragem
e de valor moral.
– Vamo-nos! – chamou-nos o Assistente – nosso companheiro vai bem e dispensa-nos de maior colaboração.
SaÃmos admirados com o exemplo entrevisto. Daà a instantes, Jerônimo conduzia-nos a confortável apartamento em moderno arranha-céu de elegante bairro.
Entramos.
No leito, permanecia respeitável senhora de idade avançada, com evidentes sinais de moléstia do coração. Cercavam-na, atenciosas, duas senhoras ainda jovens, que a cumulavam de discretos cuidados.
– É nossa irmã Albina – explicou-nos o dirigente amigo –, filiada a organizações superiores de nossa colônia espiritual. Tem inúmeros admiradores em nossa esfera de ação, pelo muito que vem fazendo na esfera do Evangelho. Permanece, presentemente, em serviço nos cÃrculos evangélicos protestantes. Fez profissão de fé na Igreja Presbiteriana e, viúva desde cedo, consagrou-se ao labor educativo, formando a infância e a juventude no ideal cristão.
Mais uma vez, maravilhou-me a grandeza da fraternidade legÃtima, imperante na vida superior. Não se buscava o rótulo das criaturas, não se cogitava, em sentido particularista, de seus tÃtulos religiosos ou sociais. Procurava-se o coração fiel a Deus, ministrava- se amparo reconfortador, sem qualquer preocupação exclusivista.
O Assistente Jerônimo aproximou-se dela, tocou-lhe a fronte com a destra e Albina, de semblante iluminado e feliz ao contacto daquela mão bondosa e acariciante, exclamou para uma das companheiras que a assistiam:
– Eunice, dá-me a BÃblia. Desejo meditar um pouco. – Ó mamãe! – respondeu-lhe a filha – não será melhor descansar?
Graças a Jesus, a dispnéia cedeu e a senhora parece tão bem disposta!
– A Palavra do Senhor dá contentamento ao espÃrito, minha filha!
Suplicante ternura acompanhou-lhe a expressão verbal, e de tal modo que Eunice. vencida, apanhou o volume de sobre vasta cômoda e entregou-lho.
A respeitável anciã assumiu adequada posição para a leitura, recostou-se em travesseiros altos e, tomando os óculos, segurou, firme, o Testamento Divino. O Assistente Jerônimo ajudou-a a abri-lo, em determinado lugar, sem que a interessada lhe percebesse a cooperação. Patenteou-se-lhe o capÃtulo onze da narrativa de João Evangelista, alusivo à ressurreição de Lázaro.
A simpática velhinha leu-o, pausadamente, em alta voz. Terminando, exclamou comovidamente:
– Agradeço ao nosso Divino Mestre a alentadora leitura que nos mandou. Praza aos céus possamos todas nós encontrar a vida eterna, em Cristo Jesus!
Assim seja.
As filhas acompanhavam-na, respeitosas.
Jerônimo recomendou-me aplicar à doente passes de reconforto.
Depois da operação magnética, observei-lhe a insuficiência cardÃaca, oriunda de aneurisma em condições ameaçadoras.
Dispunha-se o Assistente a conversar conosco, evidenciando as formosas qualidades da enferma. quando alguém de nosso plano assomou à porta de entrada. Era dedicada amiga que vinha velar à cabeceira. Cumprimentou-nos, bondosa, com encantadora simplicidade. Jerônimo explicou-lhe nossa missão. A interlocutora sorriu e considerou:
– Reconforta-nos a proteção de que nossa irmã é objeto. No entanto, creio que há forte pedido de prorrogação em favor dela.
Todos somos de parecer que deva ser chamada à nossa esfera com urgência, para receber o prêmio a que fez jus. Todavia, há razões ponderosas para que seja amparada convenientemente, a fim de que permaneça com a famÃlia consangüÃnea, na Crosta, por mais alguns meses.
– Teremos prazer em todo serviço fraterno – acentuou Jerônimo, com afabilidade. Passaremos por aqui diariamente, até que a tarefa termine. Do que houver de novo, seremos informados.
A simpática visitante de Albina agradeceu e partimos.
Muito significativa para mim foi a ponderação ouvida, mas, reparando que o Assistente seguia atento ao trabalho que nos cabia desenvolver, abstive-me de qualquer interrogação.
Varávamos, em breve, larga porta de movimentado hospital, defendido por grandes turmas de trabalhadores espirituais. Havia aà tanta atividade por parte dos encarnados como por parte dos desencarnados.
Seguindo, porém, as pegadas de nosso dirigente, não dispensávamos maior atenção aos desconhecidos.
Após atravessarmos corredores e salas, alcançamos grande enfermaria de amparo gratuito. A maioria dos leitos ocupados mostrava o doente e as entidades espirituais que o rodeavam, umas em caráter de assistência defensiva, outras em acirrada perseguição.
Desdobravam-se-nos as mais diversas cenas.
Prevenindo, talvez, mais a mim que aos demais companheiros, o dirigente de nosso grupo recomendou:
– Não dispersem a atenção. Decorridos alguns segundos, estávamos à frente dum cavalheiro maduro, rosto profusamente enrugado e cabelos brancos, a cuja cabeceira vigiava excelente companheiro espiritual.
Apresentou-nos Jerônimo a esse último. Tratava-se do irmão Bonifácio, que ajudava o doente.
Em seguida, indicou-nos o doente mergulhado em lençóis alvos e esclareceu:
– Aqui temos nosso velho Cavalcante. É virtuoso católicoromano, espÃrito abnegado e valoroso nos serviços do bem ao próximo. Veio de nossa colônia, há mais de sessenta anos, e possui grande cÃrculo de amigos pelos seus dotes morais.
Sua existência, cheia de belos sacrifÃcios, fala ao coração. Aqui se encontra, junto dos filhos da indigência, abandonado da parentela, em virtude de suas idéias de renúncia à s riquezas materiais. Mas não se acha desamparado pela Divina Misericórdia.
Findo ligeiro intervalo, adiantou-se Bonifácio, informando:
– A intervenção no duodeno foi marcada para amanhã.
Nosso dirigente, deixando perceber que já conhecia o caso, comunicou:
– Assisti-lo-emos no instante oportuno.
Obedecendo-lhe as recomendações, fiz aplicações magnéticas, detendo-me, em particular, sobre o aparelho digestivo, da glândula parátida ao reto, observando, além da ulceração duodenal, a inflamação adiantada do apêndice, quase a romper-se.
Notei, todavia, que Cavalcante era absolutamente alheio à nossa influenciação. Nada percebia de nossa presença ali, verificando que ele, apesar das elevadas qualidades morais que lhe exornava o caráter, não possuÃa bastante educação religiosa para o intercâmbio desejável. Dos quadros que havÃamos observado naquele dia, esse era, sem dúvida, o mais triste. Além das vibrações do ambiente perturbado, o operando não oferecia fácil ensejo à nossa atuação.
– Tenho tido dificuldade para mantê-lo tranqüilo – dizia Bonifácio, inclinando-se para o Assistente – em vista dos parentes desencarnados que o assediam de modo incessante.
Não obstante os trabalhos de vigilância que garantem o estabelecimento, muitos deles conseguem acesso e incomodam-no. O pobrezinho não se preparou, convenientemente, para libertar-se do jugo da carne e sofre muito pelos exageros da sensibilidade. E muito embora o abandono a que foi votado, tem o pensamento afetuoso em excessiva ligação com aqueles que ama. Semelhante situação dificulta-nos sobremaneira os esforços.
– Sim – concordou Jerônimo –, entendemos a luta.
A deficiência de educação da fé, ainda mesmo nos caracteres mais admiráveis, origina deploráveis desequilÃbrios da alma, em circunstâncias como esta. Conservar-nos-emos, porém, a postos, como retribuição ao devotado amigo pelos obséquios inúmeros que dele recebemos.
Quando nos despedimos, Bonifácio mostrou-se comovido e grato.
Transcorridos escassos minutos, ganhávamos o pórtico de notável, simples e confortável edifÃcio, em que se asilavam numerosas criancinhas, em nome de Jesus. Tratava-se de louvável instituição Espiritista-Cristã, onde se sediava compacta legião de trabalhadores de nosso plano.
Bondoso ancião recebeu-nos afavelmente. Reconheci-o, jubiloso.
Achava-se, ali, Bezerra de Menezes. o dedicado irmão dos que sofrem.
Abraçou-nos, um a um, com espontânea jovialidade. Ouviu as explicações de Jerônimo, com interesse, e falou, sorridente:
– Já esperávamos a comissão. Felizmente, porém, nossa querida Adelaide não dará trabalho. O ministério mediúnico, o serviço incessante em benefÃcio dos enfermos, o amparo materno aos órfãos nesta casa de paz, aliados aos profundos desgostos e duras pedradas que constituem abençoado ônus das missões do bem, prepararam-lhe a alma para esta hora...
Ele mesmo tomou-nos a dianteira, conduzindo-nos a compartimento modesto, onde a médium repousava.
Na câmara solitária, não se via nenhum irmão encarnado; contudo, duas jovens cercadas de prateada luz permaneciam ali, acariciando-a.
Acercamo-nos da enferma, respeitosamente. Seus cabelos grisalhos semelhavam-se a formosos fios de neve. Indicando-a, falou Bezerra, contente:
– Adelaide sempre foi leal discÃpula do Mestre dos Mestres. Apesar das dificuldades, dos espinhos e aflições, perseverou até
ao fim.
A digna senhora, após olhar demoradamente delicados ramos de rosas que lhe ornavam o quarto, entrou em oração. De sua mente equilibrada, emanavam raios brilhantes. Não nos enxergou ao seu lado, exceção do devotado Bezerra de Menezes, a quem se unia por sublimes cadeias do coração. Ele saudou-a, afável e bondoso, endereçando-lhe palavras reconfortantes e carinhosas.
– Sei que é o termo da jornada, meu venerável amigo – disse a médium, em tom comovedor –, e estou pronta.
- Desde muitos anos, rogo ao Divino Senhor me revele o caminho.
Não desejo adotar outros desÃgnios que não pertençam a Ele, nosso Salvador.
Todavia... Não pôde continuar. Emoção profunda estrangulara-lhe a voz e, logo após a reticência dolorida, copioso pranto começou a brotar- lhe dos olhos encovados.
Bezerra acomodou-se junto dela, com intimidade paternal, afagou-lhe com a luminosa destra a fronte abatida e falou otimista:
– Já sei. Você pensa nos parentes, nos amigos, nos órfãozinhos e nos trabalhos que ficarão. Ó Adelaide! compreendo seu devotamento materno à obra de amor que lhe consumiu a vida.
Entretanto, você está cansada, muito cansada e Jesus, Médico Divino de nossa alma, autorizou o seu repouso. Confie a Ele as penas que lhe oprimem o espÃrito afetuoso. Deponha o precioso fardo de suas responsabilidades em outras mãos, esvazie o cálice de sua alma, alijando amarguras e preocupações.
Converta saudades em esperanças e desate os elos mais fortes, atendendo a ordem Divina.
Adelaide pousou no benfeitor os olhos muito lúcidos, revelando-se confortada e, após breve pausa, Bezerra prosseguiu:
– Sua grande batalha está terminando. Você é feliz, minha amiga, muito feliz, porque seu EspÃrito virá condecorado de cicatrizes, depois de resistir ao mal durante muitos anos, como sentinela fiel, na fortaleza da fé viva... Ensinou aos que lhe cercaram o caminho todas as lições do bem e da verdade possÃveis ao seu esforço... Entregue parentes e afeições a Jesus e medite, agora, na Humanidade, nossa abençoada e grande famÃlia.
Quanto aos serviços confiados por algum tempo à sua guarda, estão fundamentalmente afetos ao Cristo, que providenciará as modificações que julgue oportunas e necessárias. Baste a você o júbilo do dever bem cumprido. Arregimente, pois, as suas forças e não se entristeça, porque é chegado para seu coração o prélio final... Coragem, muita coragem e fé!
A respeitável irmã sorriu, quase feliz. Logo em seguida, pequena auxiliar do instituto quebrou o colóquio espiritual, abrindo a porta inesperadamente e anunciando visitas.
Dona Adelaide, em face das circunstâncias, centralizou a mente no cÃrculo dos encarnados e perdeu o benfeitor de vista.
O venerando médico dos infortunados passou a entender-se com Jerônimo, acerca de vários problemas que diziam respeito à nossa missão, enquanto nos retirávamos, discretamente, proporcionando- lhes maior liberdade à permuta de idéias.
terça-feira, 29 de agosto de 2017
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