terça-feira, 29 de agosto de 2017

18 - Desprendimento Difícil

Agora, tínhamos sob os olhos o caso Cavalcante em processo final.

O pobre amigo permanecia agarrado ao corpo pela vigorosa vontade de prosseguir jungido à carne. A intervenção no apêndice inflamado, ao mesmo tempo que se buscava remediar a situação do duodeno, fizera-se tardia. Estendera-se a supuração ao peritônio e debalde se combatia a rápida e espantosa infecção.


O enfermo perdia forças e, porque não conseguia alimentar-se como devia, não encontrava recursos para compensar as perdas vultosas.


O intestino inspirava repugnância e compaixão. 


Qual estranho vaso destinado a fermentação, continha o ceco trilhões de bacilos de variadas espécies. Profundo desequilíbrio afetava as funções dos vasos sanguíneos e linfáticos no intestino delgado. O cólon transverso e o descendente semelhavam-se a pequenos túneis, repletos das mais diversas coletividades microbianas. As vilosidades permaneciam cheias de sangue purulento e, de quando em quando, abriam-se veias mais frágeis, provocando abundante hemorragia.

Em todo o aparelho intestinal, verificava-se o gradual desaparecimento do tônus das fibras. O pâncreas não mais tolerava qualquer trabalho, na desintegração dos alimentos, e o estômago deixava perceber avançada incapacidade. As glândulas gástricas jaziam quase inertes. Distúrbios destrutivos campeavam no fígado, onde animálculos vorazes se valiam da progressiva ausência de controle psíquico, manifestando-se ao léu, como microscópicos salteadores em sanha festiva.


O doente, por fim, já não suportava nenhuma alimentação. O estômago expulsava até a própria água simples, deixando-o exausto, em vista do tremendo esforço despendido nos reiterados acessos de vômito.


O sistema nervoso central e o abdominal, bem como os sistemas autônomos, acusavam desarmonia crescente.


Reconhecia, entretanto, ali, naquele agonizante que teimava em viver de qualquer modo no corpo físico, o gigantesco poder da mente, que, em admirável decreto da vontade, estabelecia todo o domínio possível nos órgãos e centros vitais em decadência franca.


Decorridos mais de quatro dias, em que atentávamos para o moribundo, cuidadosamente, Jerônimo deliberou fossem desatados os laços que o retinham à esfera grosseira.


Bonifácio, prestimoso e gentil, coadjuvava-nos o trabalho.


Informando-se de nossa resolução, de modo vago, através dos canais intuitivos, o doente, pela manhãzinha, chamou o capelão, a fim de ouvi-lo, e, após breve confissão, que o sacerdote reduziu ao mínimo de tempo, em virtude das emanações desagradáveis que se desprendiam da organização fisiológica em declínio, o pobre Cavalcante, mal suspeitando a paz que o aguardaria na morte, procurou reter o eclesiástico, em contristadora conversação:


– Padre – dizia ele, em voz súplice –, sei que morro, sei que estou no fim...


– Entregue-se a Deus, meu amigo. Só Ele pode saber em definitivo o que surgirá. Quem sabe se ainda tem longos anos à sua frente? Tudo pode acontecer..


O capelão falava apressado, abreviando a palestra e tentando dissimular suas penosas impressões olfativas, mas o moribundo continuou, ingênuo:


– Tenho medo, muito medo de morrer... – Bem – obtemperou o religioso, não ocultando um gesto de enfado que passou despercebido aos olhos do crente –, precisamos preparar o espírito para o que der e vier.


РOṳa, padre!... acredita que me salvarei?


– Sem dúvida. Você foi sempre bom católico...


– Mas... escute! – e a voz do enfermo fez-se triste, mais chorosa e sufocada – eu desejaria morrer noutras condições. Segundo lhe confessei, fui abandonado pela mulher, há muitos anos... Sabe que ela me trocou por outro homem e fugiu para nunca mais...


Sempre admiti que experimentei semelhante prova por incapacidade de compreensão da parte dela, mas, agora, padre... encarando a morte, frente a frente, reflito melhor... Quem sabe se não fui o culpado direto? Talvez tivesse levado longe demais meu propósito de viver para a religião, faltando-lhe com a assistência necessária...


Lembro-me de que, às vezes, chamava-me “padre sem batina”. Possivelmente minha atitude impensada teria dado origem ao desvio da minha companheira...


Após fitar o clérigo demoradamente, implorou:


– Poderá sua caridade continuar indagando por mim? Necessito vê-la, a fim de apaziguar a consciência... Há onze anos, perdia de vista...


O sacerdote, no entanto, não parecia intimamente interessado em satisfazê-lo e repetia com impaciência:


РDescanse, descanse... Prosseguirei nas dilig̻ncias.


 Tenha coragem, Cavalcante! É provável que tudo venha ao encontro de nossos desejos.

O moribundo, voz entrecortada pelo cansaço. murmurou:


– Obrigado, padre, obrigado!...


O religioso intentou sair, mas Cavalcante, amedrontado, perguntou, ainda: – Acha que me demorarei muito tempo no purgatório?


РQue id̩ia! Рresmungou o interlocutor, entediado РFalta-lhe suficiente confian̤a no poder de Deus?


Enunciou as últimas palavras com tamanha irritação que o enfermo lhe percebeu o descontentamento, sorriu humilde e calou-se.


O sacerdote, ao se afastar, aliviado, encontrou certo médico e indagou:


РAfinal, que acontece ao Cavalcante? Morre ou ṇo morre?


Estou cansado de tantos casos compridos.


– Tem sido gigante na reação – informou o clínico, bem humorado –. Considerando-lhe, porém, os males sem cura, venho examinando a possibilidade da eutanásia.


– Parece-me caridade – redargüiu o religioso –, porque o infeliz apodrece em vida...


O esculápio abafou o riso franco e despediram-se.


A cena chocava-me pelo desrespeito. Ambos os profissionais, o da Religião e o da Ciência, notavam situações meramente superficiais, incapazes de penetração nos sagrados mistérios da alma.


Entretanto, para compensar tão descaridosa incompreensão, Cavalcante era objeto de nosso melhor carinho. Por mim, não saberia ministrar-lhe benefícios, dada a insipiência de minha singela colaboração, mas Jerônimo e Bonifácio cercavam-no de singular cuidado, amparando-o como se fora bem-amada criança.


Quando o eclesiástico pisava mais longe, o meu Assistente considerou:


– O pobre sacerdote ainda não possui “olhos de ver”. Cavalcante foi, antes de tudo, perseverante trabalhador do bem.


Enquanto isso, o enfermo buscava enxugar as lágrimas copiosas.


A atitude do capelão advertira-o do deplorável estado de seu corpo físico. Passou a sentir o cheiro desagradável das próprias vísceras, agravando-se-lhe o mal-estar. Sob incoercível angústia, pediu o comparecimento de determinada religiosa, dentre as diversas que atendiam a casa. Experimentava funda sede de consolo, necessitava coragem que lhe viesse do exterior. 


Provavelmente encontraria no coração feminino o reconforto que o confessor não lhe soubera prodigalizar. Porém, a “irmã de caridade” não trazia consigo melhor humor. Fez questão de escutá-lo, alçando desinfetante enérgico ao nariz, a infundir-lhe surpresa ainda mais dolorosa.

Cavalcante chorou, queixou-se. Precisava viver mais alguns dias, declarou, humilhado. Não desejava partir sem a reconciliação conjugal. Rogava providências médicas mais eficientes e prometia pagar todas as despesas, logo pudesse tomar ao serviço comum. Pretendia recorrer a parentes endinheirados que residiam  a distância. Resgataria o débito até o derradeiro centavo.


A “irmã de caridade”, depois de ouvi-lo, com impassível frieza, foi mais sucinta:


– Meu amigo – disse, áspera –, tenha fé. A casa está repleta de enfermos, alguns em piores condições.


Como o doente insistisse nas solicitações, concluiu ríspida e secamente:


РṆo tenho tempo.


O agonizante deu curso ao pranto silencioso. 


Recordou, de alma oprimida por angustiosa saudade, a infância e a juventude.

Percorrera as estradas terrenas, de coração aberto à prática do bem. Não compreendia Jesus encerrado nos templos de pedra, a distância dos famintos e sofredores que choravam por fora. A doutrina que abraçara não lhe oferecia ensejo de mais vasta aplicação ao exemplo evangélico. Era compelido a satisfazer obrigações convencionais e a perder grande tempo através de manifestações do culto externo; entretanto, valera-se de toda oportunidade para testemunhar entendimento cristão. Porque amara o exercício do bem, constante e fiel, era aborrecido aos sacerdotes e familiares em geral. A parentela, inclusive a esposa, considerava-o fanático, desequilibrado, imprestável. Perseverava mesmo assim. Embora as condições elevadas em que desenvolvera a fé, ignorava as lições do Além-Túmulo e receava a morte. 


Estimaria obter a certeza do destino a seguir. A visão mental do inferno, segundo as concepções católicas, punha-lhe arrepios no espírito exausto. A probabilidade dos sofrimentos purgatoriais enchia-o de temor.

Desejava algo de melhor, de mais belo que o velho mundo em que vivera até então... Suspirava por ingressar em coletividade diferente, em que pudesse encontrar corações a pulsarem sintonizados com o dele; sentia fome e sede de compreensão, de profunda compreensão, mas, prejudicado pelos princípios dogmáticos da escola religiosa a que se filiara, repelia-nos a ação.


O Assistente, pondo em prática recursos magnéticos, tentou propiciar-lhe sono brando, de maneira a subtrair-lhe os temores em socorro direto, fora do corpo físico. Contudo, o moribundo lutou por manter-se vigilante. Temia dormir e não despertar, pensava, ansioso. Queria ver a esposa, antes do fim, dizia de si para consigo. Não era, efetivamente, provável? Não seria justo morrer tranqüilo? Oh! se ela surgisse! – acariciava a possibilidade – penitenciar- se-ia dos erros passados, pedir-lhe-ia perdão. Tamanha
humildade assomava-lhe ao ser, naquela hora de grande abatimento, que não se magoaria em receber-lhe a visita junto do “outro”.


Porque odiar? Porventura, não lhe ensinava a lição de Jesus que a fraternidade constitui sempre a bênção do Altíssimo? Quem seria mais culpado? ele, que mantinha dobrada indiferença para com as exigências afetivas da companheira, pelo arraigado devotamento à fé, ou aquele homem, despreocupado de qualquer responsabilidade, que a recolhera, talvez em desesperação? Se pugnara sempre pela prática da caridade, por que motivo ele, Cavalcante, faltara com a necessária demonstração, portas a dentro do próprio lar?


Em verdade, as sugestões sublimes da fé religiosa inflamaram-lhe o espírito de amor universal. Não tolerava a sufocação do idealismo ardente. 


Ninguém poderia reprová-lo. Mas, se era esse o caminho escolhido, que razões o levaram a desposar pobre criatura, incapaz de apreender-lhe a fome de luz? Porque fizera firmes promessas a um coração feminino, ciente de que ele não poderia atendê-las? A dor desenha a tela da lógica no fundo da consciência, com muito mais nitidez que todos os compêndios do mundo.

A morte próxima enchia aquela alma formosa de sublimes reflexões.


Entretanto, o medo alojara-se dentro dela como sicário invisível.


Cavalcante, que via tão bem na paisagem dos sentimentos humanos, permanecia cego para o “outro lado da vida”, de onde tentávamos auxiliá-lo, em vão.


Jerônimo poderia aplicar-lhe recursos extremos, mas abstevese.


Inquirido por mim acerca de seus infindos cuidados, explicou, muito calmo:


РNingu̩m corte, onde possa desatar...


A resposta calou-me fundo.


Debalde, porém, procurou-se prodigalizar ao doente a trégua do sono preparatório e reconfortador. Cavalcante reagia, insistente.


Sentindo-nos a aproximação e interferência, de leve, fazia apressados movimentos labiais, recitando orações em que implorava a graça de ver a companheira, antes de morrer.


– Desventurado irmão! – comentou Bonifácio, comovido – Não sabe que a consorte desencarnou há mais de ano, num catre, vítima de uma infecção luética.


Jerônimo não se moveu, mas lutei contra mim para não disparar interrogações, a torto e a direito, em busca de pormenores.


Coibi-me, felizmente. A hora não comportava perguntas inúteis.


Meu Assistente, como se houvera recebido a mais natural das informações, dirigiu a palavra ao companheiro, recomendando: – Bonifácio, nosso amigo não pode suportar por mais tempo a
existência do corpo carnal. A máquina rendeu-se. Dentro de algumas horas, a necrose ganhará terreno e precisamos libertá-lo.


Teima em agarrar-se à carne apodrecida e pede, comovedoramente, a presença da esposa. Já tentamos auxiliá-lo a desprender-se, afrouxando os laços da encarnação no plexo solar, mas ele reage com espantoso poder. Resolvi, em vista disso, abrir pequenos vasos do intestino para que a hemorragia se faça ininterrupta, até à noite, quando efetuaremos a liberação. Peço a você trazer-lhe a companheira desencarnada, por instante, até aqui. O enfraquecimento físico acentuar-se-á vertiginosamente, de ora em diante, e, com espaço de algumas horas, as percepções espirituais de Cavalcante se farão sentir. Verá, desse modo, a esposa, antes do decesso que se aproxima e dormirá menos inquieto.


Bonifácio pôs-se pronto para cumprir a ordem e assegurou integral cooperação.


Logo após, o Assistente operou, cauteloso, sobre a região intestinal, rompendo certas veias de menor importância, atenuando-lhe a capacidade de resistência.


Ausentar-nos-íamos, por breves horas, considerando que o relógio assinalava poucos minutos além do meio-dia. Antes, porém, de nos afastarmos, observando o quadro emocionante da enfermaria gratuita, a que o moribundo se recolhera, perguntei a Jerônimo, admirado:


– Já que o nosso tutelado se enfraquecerá, a ponto de fazer observações no plano invisível aos olhos mortais, chegará a ver também as paisagens de vampirismo que me impressionam no recinto?


– Sim – informou o orientador com espontaneidade.


– Oh! mas terá energia suficiente para tudo ver sem perturbar-se? – Não posso garantir – respondeu, sorrindo –. Naturalmente, qualquer Espírito encarnado, diante de um quadro desses, poderia ser vítima da loucura e, possivelmente, atravessaria algumas poucas horas em franco desequilíbrio, dada a novidade do espetáculo.


Quando a luz aparece, em determinado plano, onde a criatura esteja “apta para ver”, tanto se enxerga o pântano como o céu.


Questão de claridade e sintonia, simplesmente.


A notícia pôs-me frêmitos de piedade.


A enfermaria estava repleta de cenas deploráveis.


Entidades inferiores, retidas pelos próprios enfermos, em grande viciação da mente, postavam-se em leitos diversos, inflingindo-lhes padecimentos atrozes, sugando-lhes vampirescamente preciosas forças, bem como atormentando-os e perseguindo-os.


Desde o serviço inicial do tratamento de Cavalcante, desagradaram-me tais demonstrações naquele departamento de assistência caridosa e cheguei mesmo a consultar o Assistente quanto à possibilidade de melhorar a situação, mas Jerônimo informou, sem estranheza, que era inútil qualquer esforço extraordinário, pois os próprios enfermos, em face da ausência de educação mental, se incumbiriam de chamar novamente os verdugos, atraindo-os para as suas mazelas orgânicas, só nos competindo irradiar boa-vontade e praticar o bem, tanto quanto fosse possível, sem, contudo, violar as posições de cada um.


Confesso que experimentava enorme dificuldade para desempenhar os deveres que ali me retinham, porquanto as interpelações de infelizes desencarnados atingiam-me insistentemente. Pediam toda a sorte de benefícios, reclamavam melhoras, explodiam em lamúrias sem fim. Sereno e forte, o meu orientador conseguia trabalhar de mente centralizada na tarefa, inacessível às perturbações exteriores. Quanto a mim, entretanto, não alcançara ainda semelhante poder. Os pedidos, os lamentos, os impropérios, feriam-me a observação, impedindo-me de conservar a paz íntima.


Por isso mesmo, ao me retirar, pensei na surpresa amargurosa do moribundo, ao se lhe abrir a cortina que lhe velava a visão espiritual.

Aguardei, curioso, o cair da noite, quando, em companhia do orientador, atravessei, de volta, o pórtico do hospital.


Cavalcante avizinhava-se do coma. O sangue alagava lençóis, que eram substituídos repetidamente. O enfraquecimento geral progredia, rápido.


O agonizante inspirava dó. Abriram-se-lhe certos centros psíquicos, no avançado abatimento do corpo, e o infeliz passou a enxergar os desencarnados que ali se encontravam, não longe dele, na mesma esfera evolutiva. Não nos identificava, ainda, a presença como seria de desejar, mas observava, estarrecido, a paisagem interior. Outros enfermos encaravam-no, agora, amedrontados.


Para todos eles, o colega de sofrimento delirava, inconsciente.


– Estarei no inferno ou vivemos em casa de loucos? – bradava sob horrível tormento moral – Oh! os demônios, os demônios!...


Vejam o “espírito mau” roendo chagas!...


E, de fácies contraída, apontava mísero ancião de pernas varicosas.


– Oh! que diz ele? – prosseguia, com visível espanto – Diz que não é o diabo, afirma que o doente lhe deve...


Ouvidos à escuta, silenciava, ansioso por registrar as palavras impensadas e criminosas do algoz desencarnado, mas, não conseguindo, desabafava-se em gritos lamentosos, infundindo compaixão.


Não fora a fraqueza invencível, ter-se-ia levantado com impulsos de louco. Doentes e enfermeiros, alarmados, optavam pela remoção do moribundo. Tinham medo. Cavalcante desvairava.


Consolavam-se, todavia, na expectativa de que a hemorragia abundante prenunciasse termo próximo. Jerônimo ministrou-lhe, então, piedosamente, recursos de reconforto e o agonizante aquietou-se, devagarinho...


Não se passou muito tempo e Bonifácio entrou conduzindo verdadeiro fantasma. A ex-consorte, convocada à cena, semelhava-se, em tudo, a sombra espectral. Não via o nosso cooperador, mas obedecia-lhe à ordem. Penetrou o recinto, arrastando-se, quase.


Satisfazendo o guia, automaticamente, veio ter ao leito de Cavalcante; fitou-o com intraduzível impressão de horror e gritou, longamente, perturbando-lhe a hora de alívio.


O moribundo voltou-se e viu-a. Alegre sorriso estampou-selhe no escaveirado rosto.


РPois ̩s tu, Bela? Gra̤as a Deus, ṇo morrerei sem pedir-te desculpas!


A ternura com que se dirigia a tão miserável figura causava compaixão.


A esposa abeirou-se do leito, tentando ajoelhar-se. Ouvindoo, assombrada, retrucou, aflita:


– Joaquim, perdoa-me, perdoa-me!...


– Perdoar-te de quê? – replicou ele, buscando inutilmente afagá- la –. Eu, sim, fui injusto contigo, abandonando-te ao léu da sorte... Por favor, não me queiras mal. Não te pude compreender noutro tempo e facilitei-te o passo em falso, colaborando, impensadamente, para que te precipitasses em escuro despenhadeiro.


Não entendi o problema doméstico tanto quanto devia... Hoje, porém, que a morte me busca, desejo a paz da consciência. Confesso minha culpa e rogo-te perdão... Desculpa-me...


Falava vencendo enormes obstáculos. No entanto, notava-se que aquele entendimento lhe fazia imenso bem. A mente apaziguara- se-lhe. Contemplava a esposa, reconhecido, quase feliz. 


– Ó Joaquim! – suplicou a mísera – perdoa-me! Nada tenho contra ti. O tempo ensinou-me a verdade. Sempre foste meu leal amigo e dedicado marido!

O moribundo escutou-a, esboçando expressão fisionômica de intensa alegria. Fitou-a, em êxtase, totalmente modificado e murmurou:


РAgora, estou satisfeito, gra̤as a Deus!...


Nesse instante, o mesmo médico que víramos, pela manhã, avizinhou-se do leito para a inspeção noturna, acompanhado de diligente enfermeira.


Chamado por ele, voltou-se Cavalcante e, pondo na boca todas as forças que lhe restavam, notificou, feliz:


– Veja, doutor, minha esposa chegou, enfim!


E, interessado em conquistar a atenção do interlocutor, prosseguia:


– Estou contente, conformado... Mas minha pobre Bela parece enferma, abatida... Ajude-a por amor de Deus!


Relanceando, em seguida, o olhar pela extensa enfermaria e fixando os quadros tristes, entre encarnados e desencarnados, inquiriu:


– Por que motivo tantos loucos foram internados aqui? Olhem, olhem aquele! Parece sufocar o infeliz...


Indicava particularidade dolorosa, em que certa entidade assediava pobre doente atacado de asma cardíaca.


O médico, no entanto, contemplou-o, compadecido, e disse à servente:


– É o delírio, precedendo o fim.


Entrementes, Jerônimo recomendou a Bonifácio retirasse a sombria figura da ex-consorte de Cavalcante, acentuando: – Não nos convém doravante a permanência de semelhante criatura. Já cumpriu as obrigações que a trouxeram aqui e ainda possui numerosos credores à espera.


A desventurada reagiu, procurando ficar, mas Bonifácio empregou força magnética mais ativa para alcançar o objetivo necessário.


Reparando, porém, que a ex-companheira se afastava aos gritos, o agonizante pôs-se a bradar, alucinado:


– Volta, Bela! Volta!


Esforçou-se o clínico por trazê-lo à esfera de observações que lhe era própria, mas debalde. Cavalcante continuava invocando a presença da esposa, em voz rouquenha, opressa, sumida.


O médico abanou a cabeça e exclamou quase num sussurro:


– É impossível continuar assim. Será aliviado. Jerônimo penetrou-lhe o íntimo, porque passou a mostrar extrema preocupação, comunicando-me, gravemente:


– Beneficiemos o moribundo, por nossa vez, empregando medidas drásticas, O doutor pretende impor-lhe fatal anestésico.


Atendendo-lhe a ordem, segurei a fronte do agonizante, ao passo que ele lhe aplicava passes longitudinais, preparando o desenlace.


Mas o teimoso amigo continuava reagindo.


– Não – exclamava, mentalmente –, não posso morrer! Tenho medo! Tenho medo!


O clínico, todavia, não se demorou muito e como o enfermo lutava, desesperado, em oposição ao nosso auxílio, não nos foi possível aplicar-lhe golpe extremo. Sem qualquer conhecimento das dificuldades espirituais, o médico ministrou a chamada “injeção compassiva”, ante o gesto de profunda desaprovação do meu orientador. Em poucos instantes, o moribundo calou-se. 


Inteiriçaramse-lhe os membros, vagarosamente. Imobilizou-se a máscara facial.

Fizeram-se vítreos os olhos móveis.


Cavalcante, para o espectador comum, estava morto. Não para nós, entretanto. A personalidade desencarnante estava presa ao corpo inerte, em plena inconsciência e incapaz de qualquer reação.


Sem perder a serenidade otimista, o orientador explicou-me:


РA carga fulminante da medica̤̣o de descanso, por atuar diretamente em todo o sistema nervoso, interessa os centros do organismo perispiritual. Cavalcante permanece, agora, colado a trilh̵es de c̩lulas neutralizadas, dormentes, invadido, ele mesmo, de estranho torpor que o impossibilita de dar qualquer resposta ao
nosso esforço.


Provavelmente, só poderemos libertá-lo depois de decorridas mais de doze horas.


Regressando Bonifácio, o meu dirigente prestou-lhe informações exatas e confiou-lhe o pobre amigo, que foi imediatamente transportado ao necrotério.


E, conforme a primeira suposição de Jerônimo, somente nos foi possível a libertação do recém-desencarnado quando já haviam transcorrido vinte horas, após serviço muito laborioso para nós.


Ainda assim, Cavalcante não se retirou em condições favoráveis e animadoras. Apático, sonolento, desmemoriado, foi por nós conduzido ao asilo de Fabiano, demonstrando necessitar maiores cuidados.

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